3 Perguntas sobre o feminismo radical anti-trans (trans-excludente)

Confira as minhas 3 respostas na íntegra para uma jornalista da Agência Diadorim

Beatriz Pagliarini Bagagli
5 min readApr 19, 2023

Camilla Figueiredo, jornalista independente da Agência Diadorim, veio até mim há uns dias atrás com alguns questões sobre feminismo radical anti-trans (ou trans-excludente) para uma matéria que ela estava fazendo sobre este assunto. A matéria foi publicada em 18 de abril, e recomendo muito a leitura, está imperdível!

Ela aborda a influência do discurso transfóbico do feminismo radical no movimento de mães sobre a maternidade. Como um adendo à matéria, acho que seria legal também publicar aqui as minhas respostas na íntegra.

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1. Por que o transfeminismo incomoda tanto as feministas autodenominadas “críticas de gênero”?

Essa é uma pergunta que eu já me faço há anos, e acho que muitas pessoas se perguntam por isso também. Eu acho que esse incômodo pode ser explicado pelo fato de que essas feministas autodenominadas “radicais” articularem tudo o que elas entendem como feminismo (e portanto, o que elas veem como sendo o cerne da luta de vida delas) a movimentos anti-trans/transfóbicos. Quer dizer, elas acham mesmo que a luta delas, tudo o que elas mais valorizam, é contra o movimento trans, e o movimento trans seria absolutamente antagônico aos ideais delas, não havendo espaço algum para conciliação, pontos em comum, política de alianças. Parte significativa da militância delas (e elas entendem a militância delas não apenas como feminismo, mas o que seria o “verdadeiro” feminismo) é lutar contra os direitos da população trans. Por isso incomoda tanto falar sobre um feminismo trans inclusivo, ou transfeminismo, porque é justamente a antítese de tudo o que elas lutam contra. Enquanto elas lutam para tentar provar que os direitos das mulheres trans e travestis constituem um perigo para mulheres cis, transfeministas defendem justamente uma articulação entre esses movimentos e questionar os estigmas e mitos transfóbicos/cisnormativos. Eu diria que essa dinâmica está no cerne desse “incômodo”.

2. Talvez a maior contradição do feminismo antitrans seja ter o discurso super alinhado com o dos bolsonaristas e da extrema-direita, setores fundamentalmente machistas e misóginos, e isso acontece em todo o mundo (Ocidente). O que torna essa aliança possível? Há relação com o pânico moral?

Eu concordo que seja uma contradição. Eu vejo bastante artigos em língua inglesa que já investigaram essa aliança entre terfs e conservadores. Não acho que seja difícil de entender porque isso acontece porque, a despeito das diferenças entre terfs e conservadores, eles têm de fato um ponto em comum, que é lutar contra o movimento de direitos da população trans. Então, na medida em que os direitos trans estão sendo colocados como alvo preferencial de pânicos morais (é algo que gera engajamento político nesse sentido, gera visualização em rede social, mobiliza atores até então meio adormecidos), é só questão de tempo para essa articulação acontecer de forma até espontânea. Mas eu acho que existem limites nessa aliança. Eu diria a respeito do aborto e da sexualidade. Feministas tradicionalmente lutam por direitos reprodutivos, o que inclui direito ao aborto descriminalizado, legalizado e seguro. Eu não saberia dizer o real engajamento de terfs nessa questão, mas eu acredito que seja um ponto sensível. E sobre sexualidade, eu vejo ainda um ponto de desencontro até mais grave, pois conservadores não lutam a favor de gays, lésbicas e bissexuais, enquanto muitas terfs entendem que parte integrante de toda a sua militância é voltada aos direitos das lésbicas, até mais do que a questão do aborto. Para muitas terfs, a identidade lésbica é idealizada, é uma identidade que precisa ser defendida inclusive contra a “ameaça trans” (quando elas dizem, por exemplo, que a “transexualidade é a nova cura gay juvenil”), o que vai contra movimentos conservadores tradicionais que são, via de regra, heteronormativos.

3. Assim como os ultraconservadores, as TERF saem logo em defesa da infância e da juventude, querendo impedir os procedimentos de transição de gênero para crianças e adolescentes. Aceitar que crianças cresçam e sejam socializadas em categorias de gênero distintas do sexo de nascimento faria com que todo o argumento transexcludente — de que as relações/hierarquias de poder se baseiam no sexo, não no gênero — caísse por terra em algumas gerações. Você acha que elas elaboram esse pensamento?

Eu acho que elas sempre encontrariam alguma justificativa para negar a “essência” de mulheridade/feminilidade às mulheres trans e travestis e de hombridade/masculinidades aos homens trans e pessoas transmasculinas. Terfs sabem conjugar muito bem de forma retórica argumentos de natureza biológica e social de forma a não parecer contraditório e reforçar uma visão de mundo cisnormativa. E isso pega porque a ideologia de gênero dominante na nossa sociedade é a cisnormatividade. Então mesmo se eu disser que uma menina trans fez a transição social logo na infância e foi “socializada como menina” elas irão enquadrar a experiência e perspectiva dessa menina na esfera do patológico, anormal ou indesejado. Vão dizer que ela jamais vai ser como uma menina cis — que crianças são muito novas para fazer a transição e nenhuma deveria ter esse direito, nem mesmo de uma transição social; que ela só se identifica como menina em razão de uma imposição exterior dos adultos em sua volta de “estereótipos prejudiciais e limitantes de feminilidade” sobre seu comportamento, ao invés de ser um processo de identificação legítimo que parte da própria criança; que elas estão fazendo a transição por questões relacionada a transtornos mentais (sugerindo, por exemplo, que se tratarmos a depressão de um jovem com disforia de gênero ele vai deixar de se identificar como trans, o que pode inclusive fomentar, mesmo de forma mascarada, esforços pseudoterapêuticos para corrigir/mudar a identidade de gênero, comprovadamente prejudiciais para a população trans e de gênero diverso). Caso algum argumento de natureza mais social não cole, elas vão lançar mão de algum sobre biologia, atrelando, de alguma forma, o gênero originalmente esperado pela genitália da criança ao suposto gênero “verdadeiro” dela.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.