“Disforia de gênero de início rápido” (DGIR): uma fraude pseudocientífica que mira os jovens transgêneros e suas famílias

Beatriz Pagliarini Bagagli
6 min readApr 8, 2019

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Por Zinnia Jones. Tradução de Beatriz P. Bagagli.

“Disforia de gênero de início rápido” (DGIR) é uma teoria alternativa recente de disforia de gênero em adolescentes que propõe que muitos desses jovens são na verdade cisgêneros e foram levados a acreditar falsamente que são trans. Esta falsa crença de disforia é supostamente transmitida entre amigos em grupos sociais, assim como por meio de material online sobre transgeneridade e transição encontrado em sites como o YouTube, Reddit e Tumblr. Essas descobertas e outras mais foram apresentadas primeiramente em uma sessão de pôsteres em 2017 (Littman, 2017) e novamente em 2018 no primeiro estudo publicado sobre essa suposta condição (Littman, 2018).

A DGIR é notável não apenas pelas hipóteses que propõe, mas pelos processos nos quais as hipóteses foram traçadas e pela controvérsia em torno disso. Ao pesquisar apenas os pais na obtenção de relatos de segunda mão sobre seus filhos trans ou em questionamento de gênero, ao recrutar esses pais de comunidades anti-trans que já acreditam que “disforia de gênero de início rápido” é algo real e ao ignorar uma vasta quantidade de literatura existente que já aborda essas experiências relatadas de disforia de gênero, o estudo afirma observar uma nova condição que provavelmente é apenas uma ilusão criada por essa metodologia particularmente ruim. Além disso, o construto da DGIR é tão vagamente definido que corre o risco de incorretamente enganar os jovens trans que sofrem de disforia de gênero sob esse novo diagnóstico e desconsiderar sua identidade de gênero como inautêntica e inválida — uma função que pode ter sido intencionalmente concebida.

Compreender os muitos detalhes do estudo da “disforia de gênero de início rápido”, suas deficiências, e os argumentos e contra-argumentos pode parecer imponente. A hipótese envolve reivindicações abrangentes que tocam em muitas áreas da ciência transgênera, com uma análise muitas vezes defeituosa ou distorcida de maneiras sutis. No Gender Analysis, continuamos examinando as falhas do estudo em profundidade, com vários artigos revisando as questões específicas do trabalho e suas descobertas — incluindo as áreas em que o jornal usou equivocadamente o nosso próprio trabalho a serviço da defesa de sua teoria fraca. Esperamos que essas explorações detalhadas sirvam para aumentar a compreensão do público sobre a hipótese altamente questionável da “disforia de gênero de início rápido”.

Pesquisar apenas os pais em relação a sua consciência da identidade transgênero de seu filho produzirá um quadro distintamente diferente do que já se sabe sobre o curso do desenvolvimento da identidade trans e queer. Estudos anteriores demonstraram que os jovens normalmente estão cientes de sua identidade por anos antes de divulgar isso a familiares e outros, indicando que basear-se apenas nos relatos dos pais não fornece informações confiáveis sobre o real desenvolvimento da identidade desses jovens.

O estudo publicado sobre a disforia de gênero de início rápido recrutou entrevistados de três sites que hospedam retórica abertamente anti-transgênera, com os membros desta comunidade endossando abertamente a crença de que os jovens trans são inautênticos ou incorretos em suas identidades. Isso enviesa substancialmente a amostragem do estudo, inclinando-a para pais entrevistados mais suscetíveis de duvidar da identidade de gênero de seus filhos e que acreditam em explicações alternativas, muitas vezes com teor conspiratório.

O construto da “disforia de gênero de início rápido”, como definido pelo estudo, mostra uma sobreposição significativa com o diagnóstico de disforia de gênero que já é reconhecido no DSM-5, pondo em causa se essa é realmente uma entidade clínica nova ou separada.

O estudo sobre “disforia de gênero de início rápido” cita, sem a devida atribuição, nosso artigo anterior sobre sintomas de transtorno de despersonalização em pessoas trans. Aparentemente, não percebendo que o transtorno de despersonalização é uma condição bem definida que ocorre em taxas elevadas em pessoas trans e muitas vezes entra em remissão após a transição, a autora descreve incorretamente isso como “sintomas vagos e inespecíficos” que supostamente enganam as pessoas cisgêneras a acreditarem falsamente que elas têm disforia de gênero.

Depois da questão da descaracterização da despersonalização na disforia de gênero foi levantada no estudo da autora, ela alegou que a citação do nosso artigo como um exemplo em seu trabalho não pretendia ser uma “lista exaustiva” de materiais on-line que supostamente enganariam jovens cis a acreditarem falsamente de serem transgêneros. No entanto, ela não forneceu outros exemplos de tais materiais, e aparentemente não está ciente de que o nosso próprio artigo tenha sido citado anteriormente por terapeutas de gênero como potencialmente benéfico na ajuda de pessoas trans a reconhecer seus sintomas de disforia de gênero.

O uso inadequado do nosso artigo sobre sintomas de despersonalização mais tarde recebeu uma cobertura no Slate, com detalhes adicionais sobre a natureza das condições dissociativas em pessoas trans e as fraquezas da metodologia e das alegações do estudo.

O estudo da DGIR afirma que as comunidades de apoio transgêneras online estão treinando indivíduos sobre como enganar os médicos a fim de obter tratamento para a transição. No entanto, isso dificilmente é característico de uma nova condição distinta da disforia de gênero: a partir dos anos 1960, já estava bem documentado que as pessoas trans haviam aprendido quais abordagens eram mais eficazes para o acesso ao atendimento médico, muito antes de qualquer suposto surgimento de “início rápido” da disforia de gênero.

Muitos comentaristas sugeriram que a “disforia de gênero de início rápido” é a causa de um aumento recente na apresentação de jovens trans assignados como mulheres para o tratamento. No entanto, isso também não é característico de uma nova condição, já que as proporções de sexo entre pessoas trans têm variado substancialmente ao redor do mundo e ao longo das décadas, com pessoas trans assignadas como mulheres frequentemente excedendo em número aquelas assignadas como homens.

O estudo da “disforia de gênero de início rápido” sugere que os sintomas aparentes da disforia de gênero podem, em vez disso, serem o resultado de inúmeros outros fatores, desde depressão e ansiedade até términos de relacionamentos e assédio sexual. No entanto, o estudo não apresenta evidências que mostrem que qualquer uma dessas experiências comuns na população em geral pode resultar em disforia de gênero.

O estudo sugere que muitos jovens podem estar confundindo sentimentos normais e comuns na adolescência com sintomas de disforia de gênero. Esta afirmação é contrariada por estudos existentes que mostram que os sintomas de disforia de gênero são extremamente incomuns na população geral de adolescentes.

Muitos meios de comunicação escolheram enquadrar sua cobertura sobre o estudo como uma questão primariamente de liberdade acadêmica e científica versus forças de censura do ativismo. Tal lente negligenciou o reconhecimento das falhas sérias no próprio estudo e descaracteriza o engajamento crítico em relação ao conteúdo do estudo como sendo uma tentativa de supressão.

Última atualização: 30 de novembro de 2018

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.