Luiz Felipe Pondé está errado sobre pessoas autistas e trans
Algumas reflexões sobre o recente artigo do comentarista na Folha de S.Paulo
Vamos falar do artigo recente (e lamentável) de Luiz Felipe Pondé sobre autismo na Folha de S. Paulo: “O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype”. Nele, ele argumenta que no “mercado das vanguardas do comportamento” talvez valha mais a pena ter um filho autista do que trans.
Aqui ele está dizendo, portanto, não apenas que o autismo “ganhou” da transgeneridade no tal “mercado de vanguarda de comportamento” (seja lá o que isso realmente signifique) como também que ter um filho trans, de alguma forma, é algo desejável e valioso para os pais e a sociedade no geral. Ao lermos isso, já nos deve soar um sinal de alerta de desconfiômetro: será que é assim mesmo?
Ele cita uma personagem de uma série sul-coreana para argumentar a favor dessa percepção. A personagem, autista, é representada com uma memória e inteligência de gênio, “traços de grande vocação a ferramenta de alto valor de mercado no capitalismo contemporâneo”. Pois bem, vamos pensar sobre isso melhor.
Pondé está querendo argumentar que, pelo fato de uma personagem autista ser representada como extremamente inteligente; e a inteligência extrema ser valorizada pelo capitalismo, logo, o autismo também é valorizado pelos pais e pela sociedade e tem se tornado, hoje em dia, “moda”. Perceba como esse raciocínio é, na verdade, profundamente falho. A própria evidência apresentada no texto (um único personagem de ficção) é bastante parcial, praticamente aleatória.
Vejam como é lamentável pensar que um texto tão medíocre ganha visibilidade numa plataforma jornalística como a Folha de S. Paulo.
Pois bem, mesmo que concluíssemos que na verdade existe um monte de personagens na ficção de autistas geniais, Pondé não conseguiria na verdade provar o seu ponto — porque isso simplesmente não nos permite concluir que autistas realmente sejam valorizados socialmente e o diagnóstico esteja na “moda”.
É por essas e outras que eu sempre fico com o pé atrás quando vejo alguém falando sobre a “romantização” ou “glamorização” de uma condição. Será que é isso mesmo? O que realmente as pessoas estão querendo dizer quando usam essas palavras?
No caso das pessoas autistas, o aumento do diagnóstico não significa nem que houve necessariamente um aumento real no número de pessoas autistas, nem que o autismo indique uma “moda capitalista” — significa apenas que mais pessoas passaram a ter acesso a informação e conscientização sobre o que é autismo — uma coisa boa. Qualquer semelhança ou analogia com a transgeneridade (não) é coincidência.
Considero extremamente cruel essa percepção enviesada e equivocada de considerar algo que é realmente motivo de comemoração (o “aumento” no número de pessoas autistas e trans e a conscientização sobre essas condições) como se fosse fonte de suspeita ou indício de algo pernicioso (“comodificação de identidades pela lógica capitalista”).
O fato de existirem mais pessoas se entendendo trans e autistas não é fruto de um aspecto ou funcionamento criticável do capitalismo. Pessoas não estão se tornando trans e autistas porque isso é supostamente uma moda alimentada pelo capitalismo. Acreditar que pessoas se tornam trans e autistas por ideologia, ou ainda que existam pessoas “não verdadeiramente” trans e autistas “querendo” ser trans e autistas por uma mera moda turbinada pelo capitalismo contemporâneo já é se inscrever em um enquadramento estigmatizante, cisnormativo e capacitista.
Percebam ainda o quão essa visão está de fato distorcida: nenhum pai realmente quer que seu filho seja trans ou autista. Ser um filho trans ou autista nem ao menos depende do desejo ou não dos pais. O que existem são pais que buscam aceitar seus filhos trans ou autistas da melhor forma possível, e outros nem tanto, infelizmente. Se Pondé realmente se interessasse pela vida concreta de pessoas trans e autistas ele descobriria que nem ser trans nem autista é algo digno de ser celebrado como uma moda nos dias de hoje. E se estamos conseguindo falar hoje em dia um pouquinho mais destas condições para além do estigma é algo, na verdade, louvável.
Vamos falar ainda sobre uma questão que Pondé fala no texto dele, o sofrimento. Já falei inúmeras vezes sobre isto — não deve ser nenhuma novidade para vocês que tanto o autismo quanto a transgeneridade estão associadas a certas experiências de sofrimento (aliás, no caso de pessoas trans podemos falar sobre disforia, e quanto isso pode soar incômodo, por exemplo, quando eu já refleti sobre a narrativa do “corpo errado”).
Segundo Pondé, haveria uma “fetichização do sofrimento” na representação do autismo por essa suposta ideologia da performance neoliberal (que estaria expressa tanto na representação ficcional de pessoas autistas como extremamente inteligentes, como na própria rejeição da teoria psicanalítica da mãe geladeira pela ciência, por exemplo).
Eu sou da posição de que temos que falar sobre o sofrimento ao invés de fingir que ele não existe. A princípio, ele levanta um ponto válido, que é a respeito da necessidade de falar sobre o sofrimento ao invés de simplesmente negá-lo (negação essa realizada seja pelo viés da ideologia neoliberal ou não). Isso aparece no texto dele quando ele fala a respeito de uma tendência “positiva” que seria típica da ideologia dominante de focar apenas nas supostas “vantagens” cognitivas dos autistas. No entanto, Pondé erra novamente, agora na defesa, mesmo sutil, da teoria psicanalítica da “mãe geladeira”.
Não será por meio de uma teoria estigmatizante que vamos conseguir falar sobre as reais necessidades de pessoas autistas. Ela não foi rejeitada porque estaria em dissonância com os valores capitalistas que pregam uma “positividade/produtividade” a qualquer custo, mas sim porque ela não tem base empírica, além de ser estigmatizante e inútil para realmente compreender as vivências de sofrimento das pessoas autistas.