O que a BBC não mostra: a pesquisa feita pelo “Get The L Out”

Um olhar mais atento a respeito da pesquisa utilizada na matéria da BBC escancararia o seu viés anti-trans

Beatriz Pagliarini Bagagli
5 min readNov 3, 2021
Photo by K. Mitch Hodge on Unsplash

Muitos aspectos discursivos a respeito da pesquisa realizada pelo grupo “Get The L Out” foram omitidos da matéria da BBC “We’re being pressured into sex by some trans women”. Isso, por um lado, pode ser surpreendente a princípio, tendo em vista que a matéria se baseia justamente nesta pesquisa.

Por outro lado, isso na verdade não é de se surpreender, pois explicitar o que este grupo realmente acredita sobre mulheres trans iria desconstruir, frente ao público leitor, qualquer credibilidade de imparcialidade da BBC. Vejamos brevemente alguns pontos que revelam o viés flagrantemente anti-trans a partir da thread do twitter de @MadScientist212.

O grupo “Get The L Out” declaradamente se manifesta contra as “políticas queer” e o “transgenderismo”:

Em seu website, o grupo reivindica falar a respeito da sexualidade de todas as lésbicas ao determinar que nenhuma lésbica gosta, por definição, de se relacionar sexualmente com uma mulher trans — excluindo de fato aquelas que se relacionam com mulheres trans:

A pesquisa cita Janice Raymond e Sheila Jeffreys. Em minha dissertação, analiso precisamente o papel crucial dessas duas autoras para a definição do que hoje se conhece como o “feminismo radical trans-excludente” que se reinvidica frequentemente como “crítico de gênero”. O print da pesquisa abaixo mostra a defesa da prática de misgender, que é errar propositalmente o gênero das pessoas trans.

A mera presença ou existência de mulheres trans é imaginada como uma ameaça ao movimento lésbico. Já escrevi sobre isso em diversas oportunidades, como em “o problema do radfem com pessoas trans”. Eu também já analisei a forma como a metáfora de estupro utilizada por Janice Raymond contrói a representação de mulheres trans como uma ameaça em “o corpo transexual e o feminismo radical trans-excludente: efeito metafórico e argumentação”.

Percebam o flagrante viés da BBC em considerar um grupo que acredita que a mera existência de mulheres trans é uma forma de estupro abstrato ao corpo feminino como fonte para uma matéria que alega que mulheres trans estariam pressionando outras mulheres a terem relações sexuais.

O grupo admite ter sido “obrigado” a utilizar o termo “mulher trans” em razão do comitê de ética. O grupo explicita também que não acredita que mulheres trans sejam mulheres.

A pesquisa diz que mulheres trans que se relacionarem com outras mulheres sem dizerem que são trans estariam cometendo estupro por meio do ato de “enganar” — isso provém precisamente da publicação The Transsexual Empire de 1979, cuja autora é Janice Raymond. É curioso notar como este tipo de preocupação ressoa o discurso de alguns homens cis heterossexuais que temem ser “enganados” por mulheres trans em contexto de relacionamento afetivo.

A pesquisa revela relatos de entrevistadas que se dizem “abusadas” pelo simples fato de descobrirem posteriormente que a mulher que elas estavam conversando em aplicativos de relacionamentos era trans. Ou seja, o mero fato de conversar em um aplicativo com uma mulher trans que não se revela imediatamente como trans é interpretado como uma forma de violação. Outro relato expressa o sentimento de estar “paranoica” em razão do fato de “muitos homens se parecerem com mulheres”.

A noção de “coerção” mobilizada pelo grupo é distorcida de forma a abranger referentes que jamais poderiam ser descritos como uma forma real de coerção, tais como a simples existência e presença de mulheres trans em aplicativos de relacionamento, o fato de uma mulher trans interagir com outra sem se revelar imediatamente como trans e o próprio posicionamento que reconhece a legitimidade do gênero de mulheres trans.

Nada disso realmente é capaz de coagir uma mulher lésbica a se relacionar com uma mulher trans — mas grupos anti-trans querem dar a entender que sim. Reconhecer que uma mulher trans é uma mulher não implica na obrigação de se relacionar sexualmente com ela, porque simplesmente não é uma forma de “coerção indireta” para que você se relacione com uma mulher trans.

O “Get The L Out” realmente está correto em afirmar que existe uma “grande pressão” para que a comunidade LGBT reconheça que mulheres trans sejam mulheres. Reconhecer isto, no entanto, de forma alguma implica que alguém tenha que se relacionar com uma pessoa trans.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.