O que dizem Jordan Peterson e Helen Joyce sobre pessoas trans

O mais puro creme da cisnormatividade

Beatriz Pagliarini Bagagli
4 min readSep 13, 2022

Jordan Peterson e Helen Joyce, em uma verdadeira conversa de comadre, tecem comentários cisnormativos sobre o que eles acham das pessoas trans. Na conversa, é notável o quanto eles buscam generalizar as descrições sobre nós — como se todas as pessoas trans fôssemos homogêneas e as características que eles estão elencando se aplicassem para todas as pessoas trans. Neste processo, a única coisa que realmente é revelada são as projeções imaginárias que eles fazem sobre nós.

Joyce diz basicamente que pessoas trans são auto iludidas, pois “quando você conversa com essas pessoas, o que você vê no espelho não é o que elas estão dizendo”. Talvez aqui Joyce esteja fazendo uma alusão a uma velha e equivocada noção de que pessoas trans são psicóticas ou delirantes pelo fato de se identificarem enquanto trans. Mas perceba que dizer que pessoas trans são psicóticas não iria colar facilmente, porque isso é amplamente sabido ser uma inverdade — então a comentarista precisa ser vaga a respeito do que ela realmente está falando.

Diz ainda sobre uma “fantástica versão de si” que não seria compartilhada pelas demais pessoas. Eu me pergunto que fantástica versão de si mesmo ela está se referindo — a identidade trans em si mesma ou outra coisa? Joyce está descrevendo a identificação de uma pessoa trans enquanto homem, mulher ou não binárie como uma “fantástica versão de si mesmo”?

Perceba como a imprecisão sobre o que ela está efetivamente se referindo é fundamental para a construção de sentido deste discurso cisnormativo.

Dizer que pessoas trans são iludidas e psicóticas apenas pelo fato de serem trans é algo que pode ser facilmente refutado pelo conhecimento acadêmico amplamente consolidado. Mas se você diz que pessoas trans estabelecem genericamente uma “fantástica versão delas mesmas” você consegue sustentar um discurso cisnormativo sem dizer explicitamente o que você está querendo realmente dizer, isto é: que a identidade trans em si mesma é inválida pois é um delírio.

Qualquer incômodo e reação contrária de uma pessoa trans ao discurso cisnormativo para Joyce é uma forma de “raiva narcisista”. Ou seja, pessoas trans são representadas aqui como pobres pessoas “raivosas” iludidas, homens que acreditam que são mulheres e vice-versa, e qualquer objeção à cisnormatividade é interpretada como uma reação injustificada e infantil.

É interessante notar que o que não é dito neste caso é precisamente as reais razões pelas quais pessoas trans se insurgem contra a cisnormatividade.

Não há no discurso de Joyce qualquer consideração a respeito das implicações da cisnormatividade na vida concreta das pessoas trans. Não há nenhuma consideração para os efeitos destrutivos da discriminação e violência que decorrem da ideia de que as identidades trans são inválidas. Logo, qualquer forma de resistência à cisnormatididade é invalidada como algo não apenas pueril e desnecessário, mas também fruto de uma psicopatologia. Há aqui, portanto, a própria tentativa de despolitização da luta contra a cisnormatividade.

Peterson faz uma análise psicossocial selvagem sobre pessoas trans estarem “literalmente presas” a um nível de desenvolvimento mental de uma criança de 2 anos pois, tal como uma criança pequena ainda incapaz de brincar com as demais, as pessoas trans também seriam incapazes de compartilhar as noções de si mesmas com as demais pessoas.

Aqui Peterson está aludindo para um discurso bastante recorrente em posições anti-trans acadêmicas: a alegada dependência das identidades trans de uma adoção de uma noção da subjetividade que seria voluntarista (isso se ilustra quando Peterson alude, por exemplo, para a ideia de que “você é apenas o que você diz ser” em contraposição, portanto, a algo que o outro diz que você é). (Caso alguém queira saber mais, me detive extensivamente sobre essa questão na minha dissertação “Discursos transfeministas e feministas radicais: disputas pela significação da mulher no feminismo”).

A ideia de que as identidades trans dependam de uma noção voluntarista de identidade é bastante conveniente caso você esteja querendo invalidar e estigmatizar a existência de pessoas trans. A princípio pode parecer evidente: o que você é ou deixa de ser precisa fazer sentido de forma socialmente compartilhada; ora, a identidade trans não é compartilhada socialmente (“se te disseram que você é homem, você é homem; se for mulher, é mulher”), logo, ela é inválida.

Humm, será que é assim mesmo?

A ideia de que a identidade trans não esteja inscrita na nossa cultura e sociedade por si só é equivocada. Vejam que por si só ela já é desmentida pelos próprios posicionamentos anti-trans de ambos, quando alegam equivocadamente, mais adiante nos vídeos, que exista algo como um “contágio social” da identidade trans em redes sociais e mídias e que ser trans hoje em dia está na “moda” (confira o mito #5). Ora, se a identidade trans não está inscrita na cultura compartilhada como ela poderia ser ao mesmo tempo fruto de “contágio social”?

Aqui temos um erro básico: reduzir os sentidos socialmente compartilhados sobre a identidade de gênero ao que prescreve a cisnormatividade. O que temos socialmente compartilhado em termos de sentidos sobre o que somos vai além do que a cisnormatividade prescreve. É por isso que temos brecha efetivamente possível para lutas de reivindicação de grupos minoritários, para que justamente consigamos alargar os modelos de reconhecimento socialmente compartilhados de forma a incluir as nossas identidades para além do estigma, patologização e marginalização.

Percebam como a cisnormatividade do discurso de Peterson e Joyce se fundamenta, na realidade, em falácias que não se sustentam frente ao exercício mínimo de reflexão.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.