Os 8 principais erros na psicoterapia com pessoas transgêneras

Confira uma resenha do artigo de Mizock e Lundquist (2016), publicado na revista Psychology of Sexual Orientation and Gender Diversity

Beatriz Pagliarini Bagagli
6 min readAug 22, 2020

No artigo “Missteps in Psychotherapy With Transgender Clients: Promoting Gender Sensitivity in Counseling and Psychological Practice”, as autoras Mizock e Lundquist (2016), por meio de entrevistas com pessoas trans e pesquisa bibliográfica, elencaram 8 tópicos que expressam os principais erros cometidos pelos profissionais de saúde mental nos processos terapêuticos, em especial, nas psicoterapias. São eles: sobrecarga educativa; inflação de gênero; estreitamento de gênero; evitação de gênero; generalização de gênero; reparação de gênero; patologização de gênero e por último, gatekeeping. Vamos falar um pouquinho de cada um deles aqui!

1. Sobrecarga Educativa

A sobrecarga educativa refere-se à dependência do psicoterapeuta ou do profissional de saúde em receber educação básica a respeito das questões transgêneras vinda do próprio usuário de saúde/cliente transgênero que ele começou a atender. Esta situação acaba por sobrecarregar a pessoa transgênera atendida, pois ela acaba por assumir um papel de educadora que não deveria ou não precisaria assumir — caso o profissional recebesse previamente uma educação a respeito das noções básicas que concernem as questões de identidade de gênero. Na medida em que os usuários de saúde/clientes trans têm que despender um esforço adicional para educar os profissionais, eles sentem que não estão recebendo um atendimento adequado às suas questões de saúde mental. Assim, a sobrecarga educativa nos mostra o quão importante é a inclusão de questões de gênero nos currículos acadêmicos e na formação dos profissionais de saúde.

2. Inflação de Gênero

A inflação de gênero refere-se à tendência dos profissionais de saúde em negligenciar outros aspectos importantes da vida de um usuário de saúde/cliente transgênero que não estejam diretamente relacionados às suas identidades de gênero. Nesta tendência, há um foco exagerado nas questões de gênero, o que pode impactar os processos terapêuticos, já que os usuários de saúde/clientes trans podem efetivamente apresentar questões que não se relacionam com as suas identidades de gênero. Alguns desafios ou sintomas que pessoas trans vivenciam podem ser interpretados equivocadamente como manifestação ou resultado de suas identidades de gênero. Assim, os profissionais de saúde podem espontaneamente superestimar o impacto da identidade de gênero na trajetória de vida e nos desafios pessoais das pessoas trans.

3. Estreitamento de Gênero

O estreitamento de gênero envolve a aplicação de noções preconcebidas e limitantes nos usuários de saúde/clientes transgêneros a respeito de suas identidades de gênero. Umas das noções mais arraigadas a respeito do gênero é o binarismo, a ideia de que exista tão somente dois gêneros auto-excludentes, o masculino e o feminino. Neste caso, usuários de saúde/clientes trans sentem que os profissionais estão tentando interpretar equivocadamente as suas vivências a partir de uma perspectiva a respeito de gênero que não faz verdadeiramente jus às suas próprias vivências. Para Mizock e Lundquist, este tema revela a tendência potencial dos psicoterapeutas em cometer erros clínicos ao presumir que exista uma maneira certa ou errada de explorar e expressar o seu gênero. Assim, as pessoas trans podem se sentir pressionadas, mesmo sutilmente, a corresponderem às expectativas previamente concebidas pelos profissionais de saúde. Isto pode gerar apreensão nas pessoas trans em abordar eventuais experiências de fluidez de gênero na psicoterapia por exemplo, o que acaba afetando negativamente os processos terapêuticos.

4. Evitação de Gênero

A evitação de gênero, ao contrário da inflação de gênero, refere-se à falta de foco nas questões de gênero na psicoterapia com usuários de saúde/clientes transgêneros. Podemos dizer que se trata da tendência inversa à inflação de gênero, mas que constitui igualmente um entrave para os processos terapêuticos. Neste caso, os usuários de saúde/clientes trans sentem que os profissionais de saúde estão ignorando as formas como as suas identidades de gênero impactam as suas vidas. Estes profissionais podem, por exemplo, ser excelentes no tratamento de ansiedade e depressão, mas caso os desafios em saúde mental se relacionem mais intimamente com questões de gênero, eles podem não serem capazes de abordá-los por desconhecimento, falta de capacitação ou simples desinteresse.

5. Generalização de Gênero

A generalização de gênero significa fazer suposições na psicoterapia de que todos os indivíduos trans são iguais ou ainda guiar os processos terapêuticos com base na tendência em supor que as pessoas trans necessariamente tenham formas semelhantes de se comportarem ou de se relacionarem com o mundo apenas por pelo fato de compartilhar de uma mesma característica (a identidade de gênero trans). Neste caso, existe a tendência em homogeneizar as diversas narrativas e trajetórias de vida de pessoas trans. Ao ignorar a diversidade no interior do grupo de pessoas trans, profissionais de saúde acabam criando entraves nos processos terapêuticos, pois o cuidado com a saúde mental deve priorizar as singularidades dos usuários de saúde/clientes trans.

6. Reparação de Gênero

A reparação de gênero refere-se à condução enviesada da psicoterapia na direção de “reparar” a identidade de gênero do usuário de saúde/cliente, como se a identidade transgênera fosse um problema a ser resolvido, suprimido, superado, evitado ou mesmo “curado”. Esta tendência se aproxima das ditas práticas de conversão de identidade de gênero, nas quais se preconiza a mudança da identidade transgênera para cisgênera como um desfecho clínico válido e desejável. No entanto, além de carecerem de evidências científicas de que funcionem, as terapias de conversão (sejam de identidade de gênero ou de sexualidade) são comprovadamente prejudiciais para a saúde mental das pessoas LGBT. Apesar das terapias de conversão estarem atualmente desacreditadas pelas evidências científicas e em desacordo com as melhores práticas de cuidado com a saúde e serem frequentemente práticas clandestinas e pouco documentadas, os seus defensores ou praticantes não costumam definir ou designar explicitamente suas abordagens como terapias de conversão, fazendo com que muitas vezes seja ainda mais difícil identificar, denunciar e combater esse tipo de “terapia” no âmbito jurídico e profissional.

7. Patologização de Gênero

A patologização de gênero refere-se aos processos de estigmatização da identidade transgênera como uma doença mental a ser tratada ou como responsável por todos os eventuais problemas dos usuários de saúde/clientes. A patologização das identidades transgêneras é um tema particularmente ambíguo no interior do movimento trans, pois em virtude dos procedimentos médicos de alteração corporal relacionados à transição de gênero terem sido conquistados por meio da noção de que a transexualidade é um transtorno passível de tratamento, as pessoas trans podem sentir receio em lutar pela despatologização, temendo perda na cobertura destes procedimentos, por exemplo. Por outro lado, os defensores da despatologização, além de argumentarem para modelos de acesso a esses procedimentos que não dependem da adesão a linguagem patologizante, entendem que a própria patologização limita o acesso a saúde de pessoas trans, pois a ideia de que as identidades transgêneras sejam patológicas pode funcionar como um argumento no interior de inúmeros discursos transfóbicos.

8. Gatekeeping

O gatekeeping refere-se à tendência em privilegiar o papel do psicoterapeuta ou profissional de saúde no controle do acesso a recursos médicos de afirmação de gênero. A crença de que um profissional de saúde possa saber inequivocamente se a transição de gênero é prejudicial para alguém está na base destas práticas de controle. Temendo que suas demandas por alteração corporal sejam negadas, as pessoas trans podem escolher deliberadamente omitir qualquer informação que possa fazer com que o profissional de saúde acredite que ela não esteja pronta para realizar as alterações corporais desejadas, assim como salientar, por outro lado, aquelas informações que cumprem com as expectativas diagnósticas. Isto pode gerar a desconfiança nos profissionais de saúde que os usuários de saúde/clientes transgêneros estejam conscientemente forjando suas narrativas para obter o tratamento e até mesmo falsificando suas narrativas. Em resposta a este aparente dilema, uma perspectiva patologizante espontaneamente poderá defender o recrudescimento dos critérios diagnósticos, em busca de uma narrativa transgênera presumidamente “autêntica” cada vez mais “depurada” das narrativas supostamente falsas ou insinceras. Por outro lado, os defensores da despatologização apontam que, caso as pessoas trans não tivessem que corresponder previamente com as expectativas diagnósticas para receberem atendimento, uma relação mais sincera entre usuário e profissional de saúde poderia ser estabelecida, incluindo uma compreensão mais precisa da identidade de gênero para além do binarismo de gênero.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.