OS ERROS E DISTORÇÕES DE RICHARD MISKOLCI: UMA CARTA ABERTA

Publicado originalmente em 18 de outubro de 2021

Beatriz Pagliarini Bagagli
6 min readNov 21, 2023
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Richard Miskolci, em recente entrevista para o Extra Classe, propagou erros e distorções que beiram à desonestidade intelectual.

Sua desconsideração ou menosprezo a respeito do termo identitário “não binário” é flagrante, ao dizer que “autoclassificação como não binário pode se revelar um modismo”. É muito curioso a sua suposição de que a não-binariedade só poderia eventualmente ser legítima (como um “não modismo”, “efetivar-se na vida cotidiana”, como algo verdadeiramente “sério”?) a partir de uma investigação acadêmica mais minuciosa.

Diante disto, cabe nos perguntarmos: as identidades só se tornam legítimas a partir do gesto de investigação do pesquisador? Ou a legitimidade da identidade não emergiria do próprio movimento coletivo e orgânico de reivindicações políticas do grupo? É preciso um olhar pesquisador externo para supostamente validar uma identidade, supostamente “neutro”?

É necessário também nos determos em uma passagem específica de sua fala:

Autoclassificar-se como isso ou aquilo no que se refere ao gênero expressa tanto insatisfação com a identidade atribuída socialmente à pessoa como a expectativa de deter o poder sobre o gênero, como se gênero fosse algo que alguém tem e não o resultado de regimes regulatórios, em que o gênero é sempre atribuído a nós pelos outros, pela sociedade, pelo aparato médico-legal, por exemplo.

A ideia de que as identidades trans se baseiam, se fundamentam ou se originam por meio da ilusão voluntarista do sujeito (neo)liberal ou pós-moderno é bastante recorrente — e extremamente prejudicial e perniciosa para o movimento trans. Ela adquire diferentes formas em discursos reacionários anti-trans e frequentemente tem o objetivo de desarticular o movimento trans da esquerda e do movimento de gays, lésbicas e bissexuais, sendo comum em discursos feministas radicais trans-excludentes e até mesmo de direita cristã.

Esta posição trans-antagonista se expressa na entrevista pela alegação de que a não-binariedade seria fundada sob uma “expectativa de deter o poder sob o gênero”. Ao dizer isto, Miskolci subentende uma crítica à não-binariedade, pois a ideia de que alguém possa “deter o poder sob o gênero” é facilmente criticável como algo ingênuo politicamente e epistemologicamente, seja do ponto de vista individual, político ou coletivo — o que ele efetivamente o faz, já que tece a oposição, logo a seguir, entre a não-binariedade e o fato de gênero ser “resultado de regimes regulatórios, em que gênero é sempre atribuído a nós pelos outros”; de forma a concluir, mesmo implicitamente, que “ninguém detém o poder sob o gênero”.

Em minha dissertação analiso como este tipo de alegação é falaciosa, seja no caso contra pessoas trans (binárias) como não binárias.

O fato do gênero ser atribuído a nós pelos outros e enquanto uma força coerciva e externa da sociedade não justifica a desconfiança de que nossas identidades sejam algo pueril ou mesmo justificaria a deslegitimação das identidades trans, seja binária ou não binária. Da mesma forma, a heterossexualidade é atribuída a todos os sujeitos como a norma compulsória — o que não significa que todos os sujeitos são essencialmente heterossexuais.

Outra colocação que considero problemática diz respeito a uma culpabilização, mesmo sutil, dos grupos minoritários sobre o avanço mundial do conservadorismo que o entrevistado acaba fazendo, ao dizer que “o ativismo e a própria área de pesquisa em gênero e sexualidade contribuíram para sua própria derrota ao lidarem com seus adversários em termos que os favoreciam”.

Quais foram esses termos que os favoreceram? Como isso efetivamente se deu? Reivindicar a nossa humanidade é considerado um gesto muito radical a ponto de isto justificar a própria violência que sofremos? Se tivéssemos nos comportado supostamente “bem”, de acordo com outros “termos”, será que o desfecho seria realmente tão diferente assim? Atribuir o avanço do conservadorismo a uma questão do engajamento de grupos a determinados tipos de discurso me parece ser uma análise bastante frágil e idealista.

É então a cultura de cancelamento? Ora, o movimento de pessoas trans vai muito além da dita “cultura de cancelamento” das redes sociais. Assumir que toda a militância e produção de conhecimento de pessoas trans se resumiria à cultura de cancelamento é algo absurdo e desonesto. Prefiro apostar no benefício da dúvida e assumir que Miskolci não iria aderir a um achismo tão banal e violento como esse.

O segundo erro flagrante é a respeito da sua desconsideração da produção intelectual de pessoas transexuais, travestis e transgêneras, assim como de grupos e movimentos transgêneros no geral. Ele alega neste sentido que a noção de cisnormatividade “não têm bases epistemológicas, tampouco empíricas”. Qualquer pesquisa no google acadêmico com termos como “cisgenderism” e “cisnormativity” é capaz de desmentir Miskolci.

Miskolci ignora completamente os estudos trans, que fundamentam a noção de cisnormatividade e que cada vez mais a utilizam como forma de produzir analises críticas das violências contra pessoas trans em inúmeros artigos acadêmicos e não acadêmicos. Ele se pergunta a quais interesses a noção de cisgeneridade serviria. Ora, a cisnormatividade, enquanto noção analítica, interessa à comunidade trans como forma de resistência e denúncia às normatividades que produzem violências transfóbicas e discriminações.

Para introduzi-lo, eu convidaria Miskolci a ler a definição de cisnormatividade (em inglês “cisnormativity”) presente na “SAGE Encyclopedia of Trans Studies”, editada por Abbie E. Goldberg e Genny Beemyn, publicada por uma prestigiada editora acadêmica, assim como a definição dos termos “cisgender” e “cisgenderism” no abecedário publicado na primeira versão e volume da revista Transgender Studies Quarterly (TSQ), uma prestigiada revista de estudos trans.

Eu convidaria também Miskolci a ler inúmeros artigos de alta qualidade que utilizam a noção de cisnormatividade (em inglês “cisnormativity” ou “cisgenderism”; conferir abaixo). Como um acadêmico da área, imagino que Miskolci não teria dificuldades para acessar este material — mas para as demais pessoas, é válido mencionar plataformas como sci-hub e libgen para acesso ao conteúdo.

Convidaria também o pesquisador a ler o blog transfeminismo.com, que conta com a publicação de textos e análises transfeministas de pessoas trans desde 2011, há mais de uma década, portanto, com destaques para nomes como Hailey Kaas, Viviane Vergueiro, Maria Clara Araújo, Raíssa Éris Grimm, Jaqueline Gomes de Jesus, Leila Dumaresq, Amara Moira, Caia Coelho, Yuna Vitória, Laura Venancio de Souza, Helena Vieira dentre tantas outras pessoas trans. Ao alegar falta de bases epistemológicas e empíricas, Miskolci apaga e silencia os estudos trans, que compõem análises críticas e gestos teóricos da comunidade transgênera.

Usar a noção de cisgênero e cisnormatividade como crítica das normas de gênero não pressupõe uma “compreensão de gênero estática e mecânica”, como alega Miskolci, da mesma forma quando o próprio autor e demais pesquisadores do campo utilizam a noção de heteronormatividade e heterossexualidade em seus estudos acadêmicos para desnaturalizar a heterossexualidade. Isto é, usar o termo heterossexualidade como forma de criticar a heteronormatividade não supõe a divisão “estática e mecânica” entre heterossexuais e homossexuais. Por que Miskolci é incapaz de compreender o mesmo no caso de cisgênero/cisnormatividade?

Sua alegação a respeito do estabelecimento de hierarquias improdutivas que decorreriam do suposto fato da noção de cisgeneridade apagar a experiência de inconformidade de gênero de gays, lésbicas e bissexuais é simplesmente falsa. O uso da noção de cisgeneridade não implica em uma suposta ausência de reconhecimento da inconformidade de gênero destes sujeitos e da multiplicidade de suas vivências, tampouco implica uma “secundarização” de pessoas LGB na pesquisa e ativismo, como alega explicitamente o pesquisador, sem citar qualquer base ou evidência para tanto.

Defendo precisamente políticas de aliança entre pessoas trans e cis, tendo em vista que muitas experiências que decorrem dos estigmas relacionados às sexualidades dissidentes são semelhantes às experiências de pessoas trans frente aos estigmas relacionados às identidades de gênero dissidentes. Defendo também a multiplicidade de experiências entre as próprias pessoas trans e cis, e que pessoas de gênero inconforme que não sejam trans possuem interesses políticos em comum com pessoas trans, precisamente porque a violência de gênero atinge a ambos grupos. Alegar que o uso do termo cisgênero é imobilizador para a criação de políticas de coalização é falacioso.

Em razão disto, o uso do termo cisgênero não serve, como supõe Miskolci, a uma “hierarquização interna dentro do coletivo político imaginário LGBTI+, garantindo o monopólio da palavra e da agenda a um de seus segmentos”. Nenhuma pessoa trans tem o “monopólio” da palavra simplesmente porque é trans ou usa a palavra cisgênero para designar pessoas e identidades não-trans.

Por fim, eu convidaria Miskolci a ler, especificamente sobre este assunto, um breve texto publicado na plataforma Medium chamado “Quando você coloca aspas na palavra cisgênero” — gesto este que se encontra materializado textualmente em sua entrevista.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.