Pessoas transgêneras precisam de família, não de terapia

Por Mila Madison. Tradução por Beatriz P. Bagagli. Leia no Transgender Universe.

Beatriz Pagliarini Bagagli
6 min readJan 26, 2018

Por que a institucionalização dos cuidados para pessoas transgêneras é prejudicial para a nossa comunidade, no “The Weekly Rant” com Mila Madison.

Se você se assume como uma pessoa transgênera e decidir transicionar, você é essencialmente obrigada a obter algum tipo de aprovação “profissional” em cada etapa de sua jornada para poder existir. Temos que atravessar por um milhão de instâncias diferentes apenas para provar que nós sabemos quem somos. Muitos de nós tivemos até que passar por meses de terapia antes mesmo que pudéssemos receber um laudo (letter) que nos permitisse ver um médico que pudesse prescrever hormônios. Quer fazer a cirurgia genital? Precisa de dois laudos, e sim, você precisa ter vivido em seu verdadeiro gênero há pelo menos um ano. As normas de atenção (standards of care), as diretrizes estabelecidas para o tratamento de pessoas transgêneras foram feitas com as melhores intenções, tenho certeza. É um período de espera criado para garantir que tomemos a decisão certa para nossas próprias vidas. Se tivermos a sorte de ao menos chegarmos até este ponto, temos que encontrar uma maneira de obter planos de saúde que ofereçam cobertura, ou ainda mais difícil, pagar tudo por nossa conta.

As chaves para as portas que nos levam a cada degrau que temos que subir para chegarmos a ser nós mesmos geralmente pertencem a uma pessoa cisgênera que não tem a menor ideia sobre como é ser uma pessoa transgênera. Esta é a hipocrisia da instituição que foi criada para nos tratar adequadamente. É também a razão de muitas pessoas recorrerem à auto medicação ao invés de ver um profissional, mas há também muitos perigos neste caminho que percorremos sozinhas. Em muitos casos, muitas vezes temos que ensinar aqueles que estão nos tratando, mesmo sendo eles os detentores do poder de decidir se temos a permissão de continuarmos ou não com as nossas transições. A verdade é que todos nós experimentamos alguma forma de gatekeeping em nossas vidas, seja pelos médicos ou por nossas famílias. É algo contra o qual todos nós temos que lutar.

“A REALIDADE É QUE NECESSITAMOS DE TERAPIA PARA LIDAR COM O FATO DE VIVERMOS EM UMA SOCIEDADE QUE NÃO NOS ACEITA”.

Eu não estou desmerecendo a terapia aqui. Para muitos de nós, é essencial para nossa saúde, e há alguns excelentes terapeutas por aí. O que eu estou chamando atenção é para a questão do porquê a terapia é necessária. Existe a impressão de que a terapia de gênero está lá para nos ajudar a garantir que realmente somos transgêneros e que estamos com certeza suficiente para aguentar o processo da transição. A verdade é que precisamos de terapia para lidar com o fato de vivermos em uma sociedade que não nos aceita. Esta é a origem da dor e do tormento que passamos. Muitos de nós precisamos da terapia para lidar com todo o preconceito que recebemos e a perda de todos aqueles que se afastam de nós.

Pense nisso por um momento. Nós temos que passar pelo processo de nos aceitar porque muitos de nós ouvimos que o somos é errado, durante a maior parte de nossas vidas. Desde o primeiro momento em que nos perguntamos a questão fundamental de “Eu sou trans?”, começamos a nos preocupar com a aceitação. Como eu falo para os meus pais? Como eles vão reagir? O meu parceiro vai me deixar? Vou perder meu emprego? Estas são apenas algumas das perguntas que muitos de nós enfrentam. Eu me pergunto se a questão do “Eu sou trans?” fosse na verdade “E se você fosse?”; nós ainda precisaríamos realmente de terapia? Se ser transgênero não fosse diferente de ter cabelo ruivo, terapia ainda seria necessária? Provavelmente não. A verdade é que ser transgênero não é diferente. Algumas pessoas nascem com cabelos ruivos, alguns nascem com outros traços, e sim, algumas pessoas nascem transgêneras. A única diferença é que, na maioria das vezes, a sociedade aceita ou, pelo menos, tolera muitas das qualidades distintivas que nos diferenciam, mas quando se trata de ser transgênero, geralmente não aceitam.

Eu pude concluir isto depois de iniciar um grupo de apoio para a comunidade transgênera na minha área. Nós éramos um grupo que começou com cerca de 5 pessoas e, eventualmente, crescemos para 30 que frequentam regularmente com mais outras pessoas frequentando de tempos em tempos. Nós éramos de diferentes idades. Quase todos nós estávamos em terapia mas cada um de nós estava em um ponto diferente de nossas transições. O que começou com a esperança de apenas trazer algumas pessoas acabou se transformando em algo muito maior. Ao longo do tempo, nosso grupo se tornou uma família. Conseguimos preencher as lacunas que restavam em nossas vidas pelos membros de família e amigos que nos deram as costas. Eu assisti as pessoas começarem a se unir e a estar lá um para o outro. Eu vi relações serem construídas e pessoas passando tempo juntas fora do nosso pequeno grupo. Pessoas que pareciam tão assustadas e quietas quando começamos no final se abriram e floresceram. Em apenas alguns meses, muitos de nós estavam progredindo a uma taxa de sucesso que anos de terapia não conseguiriam alcançar.

“O PROCESSO QUE TEMOS QUE SUPORTAR APENAS PARA SERMOS QUEM NÓS SOMOS É ASSUSTADOR”.

Em muitos lugares você pode conseguir uma arma através de uma licença e uma verificação de antecedentes. Você pode dirigir um carro se você conseguir passar por um exame de direção. Se você é transgênero, apenas para ser você mesmo você tem que passar por anos de terapia e conseguir laudos. É uma instituição que se tornou muito lucrativa para todos os profissionais envolvidos. O processo que temos que suportar apenas para sermos quem nós somos é assustador. Nós temos que enfrentar uma sociedade que não nos aceita enquanto navegamos por um sistema médico de gatekeepers onde temos que provar que somos o que dissemos ser. Ele é projetado para nos fazer precisar de terapia.

O que eu aprendi é que ter um senso de pertencimento a uma família que o apóia é muito mais importante do que terapia, ou talvez seja o tipo de terapia mais importante. Embora a terapia de gênero seja uma ferramenta útil, não é a coisa mais importante de todas. Precisamos de sistemas de ajuda. Precisamos de comunidade. A resposta é nos encontrarmos, nos apoiarmos e criarmos os nossos próprios espaços seguros. Comece um grupo com outras pessoas trans. Aproxime as pessoas. Crie esses espaços se eles não existem onde você mora. Faça novas famílias para substituir as que perdemos. É quando vejo esse tipo de apoio que muitas vezes vejo que as pessoas prosperam. Tudo o que é preciso é a vontade de começar.

  • Nota de tradução

Gatekeeping refere-se a noção de que alguém ocupa um espaço de poder capaz de decidir ou determinar o pertencimento de outra pessoa a uma comunidade, identidade ou o acesso a direitos. No contexto médico relacionado às questões trans, refere-se à restrição do acesso às formas assistidas de alteração corporal, como acompanhamento hormonal e cirúrgico, negando o reconhecimento das identidades trans em suas singularidades e a auto-determinação com base na ideia excludente e ultrapassada do diagnóstico de “transexualidade verdadeira”.

Mila Madison é cantora/compositora, produtora, atriz, blogueira, fashionista e ativista trans.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.