Quando os “desistentes” não são: des-desistência na disforia de gênero na infância e adolescência

Por Zinnia Jones. Tradução de Beatriz Pagliarini Bagagli. Leia o texto original, em inglês.

Beatriz Pagliarini Bagagli
11 min readJan 10, 2018

(Leia também: Do all trans youth on puberty blockers go on to transition?, Trans youth treatment, ethics, and decision-making)

A progressão da disforia de gênero na infância historicamente foi caracterizada por dois caminhos de desenvolvimento conhecidos: a persistência, em que a disforia e a identificação de gênero cruzada continuam na adolescência e, tipicamente, levam à transição social e médica, e a desistência, na qual a disforia diminui e os adolescentes continuam a se identificar e viver com o gênero atribuído. Embora os estudos tenham descoberto que, em qualquer lugar, de 2-27% das crianças com diagnóstico de disforia de gênero vão persistir em se sentirem disfóricas (Steensma, McGuire, Kreukels, Beekman, & Cohen-Kettenis, 2013), essas descobertas têm limitações cruciais e foram amplamente mal interpretadas pelo discurso público.

Mudanças recentes nos critérios diagnósticos de disforia de gênero em crianças

Uma questão é que, até recentemente, os diagnósticos de transtorno de identidade de gênero na infância foram feitos usando critérios no DSM-IV e em edições anteriores. Esses critérios eram tão amplos que permitiam que crianças em não conformidade de gênero fossem diagnosticadas com distúrbio de identidade de gênero na infância mesmo quando não se identificavam com o outro gênero ou quiseram viver como do outro gênero. Por essa razão, a maioria das amostras de “crianças com disforia de gênero” provavelmente incluiu um grande número de crianças que na verdade não experimentaram disforia para início de conversa — o que não significa que sua disforia “cessou” na adolescência, mas sim que nunca esteve presente. Em relação às mudanças do DSM-IV-TR para o DSM-5, a American Psychiatric Association declarou:

Para crianças, o critério A1 (“um desejo forte de ser do outro gênero ou uma insistência de que ele ou ela é do outro gênero …”) é agora necessário (mas não suficiente), o que torna o diagnóstico mais restritivo e conservador.

Steensma & Cohen-Kettenis (2015) notou ainda:

O que deve ser enfatizado é que esses estudos não utilizaram os critérios bastante rigorosos do DSM-5, e as crianças poderiam receber o diagnóstico com base somente no comportamento variante de gênero. Com os critérios DSM-5, a taxa de persistência provavelmente teria sido maior.

A distribuição dos resultados de desistência e seus fatores associados

Além disso, há uma tendência entre o público de entender mal as afirmações, como a de que “80% das crianças com disforia de gênero vai desistir em sua disforia na adolescência” (já debatida pelos problemas de diagnóstico acima mencionados), pudesse significar que qualquer criança individualmente com disforia de gênero pudesse, da mesma forma, ter uma probabilidade de desistência de 80%. Mas estas são duas afirmações distintas, e a última afirmação não representa com precisão o que é conhecido sobre o curso de desenvolvimento da disforia do gênero na infância e adolescência.

Nos últimos anos, os fatores específicos associados à persistência ou à desistência da disforia de gênero na infância foram estudados em detalhes cada vez maiores. Steensma, Biemond, de Boer, & Cohen-Kettenis (2011) identificaram uma série de diferenças fundamentais entre aqueles cuja disforia persistiu ou desistiu após a infância, incluindo a força de identificação com o outro gênero e desejo de uma configuração de corpo sexuado diferente:

Embora ambos aqueles que persistem e que desistem relatassem a identificação de gênero cruzada, seus motivos subjacentes pareciam ser diferentes. Aqueles que persistiram indicaram explicitamente que se sentiam que eram do outro sexo, os que desistiram indicaram que eles se identificavam como meninos femininos ou meninas masculinas que só desejavam que eles/as fossem do outro sexo. . . .

No que diz respeito à satisfação com o corpo, tanto aqueles que persistiram como os que desistiram indicaram que, com apenas 5 anos de idade, raramente experimentaram odiar ou ter aversão ao seu próprio corpo. Só depois começaram a sentir-se mais desconfortáveis com seus corpos. Uma diferença acentuada entre os relatos dos que persistiram dos que desistiram foi que os que persistiram relataram que o desconforto foi causado pelo fato de seus corpos não estarem de acordo com seus sentimentos, enquanto os desistentes não relataram isso. As meninas que persistiram relataram principalmente desejar um pênis, os meninos que persistiram em contraste desejavam se livrar de seu pênis.

Steensma et al. (2013) resumiu os achados atuais sobre associações entre traços relacionados ao gênero na infância e a probabilidade de persistência de disforia de gênero na adolescência, observando que sintomas mais proeminentes de disforia e comportamento de gênero cruzado estavam associados a uma maior persistência:

Prospectivamente, 1 estudo de Wallien e Cohen-Kettenis, relatando o desfecho na adolescência e início da idade adulta para 77 crianças clinicamente referidas com Disforia de Gênero (DG) (21 que persistiram e 56 que desistiram), descobriram que a porcentagem de um diagnóstico completo de TID (transtorno de identidade de gênero) infantil foi maior para crianças com DG persistente do que para crianças com DG desistente. Além disso, em comparação com os desistentes, os persistentes mostraram mais comportamento de variação de gênero e maior intensidade de DG na infância. Em consonância com estas descobertas, Drummond et al. mostrou que as meninas com DG persistente relataram significativamente mais comportamento de gênero variante e DG durante a infância do que as meninas classificadas como tendo DG desistente. Mais recentemente, outro estudo de Singh com 139 nascidos meninos com DG confirmou a ligação entre a intensidade da DG na infância e a persistência de DG na adolescência e na vida adulta.

O estudo veio a confirmar que a intensidade da disforia de gênero na infância, a identificação de gênero cruzado explicitamente verbalizada e a transição social na infância foram todas associadas a uma maior probabilidade de persistência na adolescência.

À luz desses inúmeros fatores conhecidos por estarem ligados à persistência ou à desistência, não é correto conceituar as “crianças com disforia de gênero” como se fossem um grupo homogêneo onde qualquer membro teria uma probabilidade aproximada de 80% de desistir na sua disforia. Um membro individual desse grupo combinado deve, ao invés disso, ser entendido ora como pertencente a um grupo que é muito improvável que persista ora como pertencente a um outro grupo que é muito provável que persista.

Casos hipotéticos de arrependimento de transição e casos reais de arrependimento pela não transição

Não obstante, um fenômeno muito persistente é a prevalência contínua de alegações bombásticas na mídia e por muitos indivíduos desinformados sobre os adolescentes com disforia de gênero serem fundamentalmente susceptíveis de serem cis e homossexuais, e que provavelmente se arrependerão da transição, com consequências supostamente catastróficas que vão do arrependimento à destransição e suicídio. Essas alegações são totalmente incompatíveis com as evidências. Nos processos diagnósticos atuais, as crianças com disforia de gênero podem experimentar os estágios iniciais de sua puberdade natal, pois sua resposta a esta e a presença ou ausência de angústia são tomadas como indicativas de que se devem ou não receber bloqueadores da puberdade (de Vries & Cohen-Kettenis, 2012). Não há relatos na literatura médica de arrependimento consistente entre os indivíduos que fizeram a transição na adolescência e um relato de um adolescente que recebeu estrogênio de forma não lícita por um membro da família sem qualquer supervisão médica e que agora se arrepende.

No entanto, um fenômeno do desenvolvimento da identidade de gênero na juventude é muito mais fundamentado do que essas preocupações em relação ao arrependimento pela transição, ao mesmo tempo em que recebem muito menos atenção: casos de de-desistência (ou “re-persistência”). Esses jovens expressam disforia de gênero em sua infância, relatam que sua disforia cessa na adolescência, mas depois descobriram que sua disforia não cessou e dão prosseguimento na procura de tratamento para transição. Pelo menos 7 desses casos são conhecidos por serem relatados na literatura médica e na mídia.

Zucker & Bradley (1995, p. 292) incluem um relato de caso de uma menina trans adolescente que inicialmente foi à clínica deles em Toronto aos 10 anos e afirmou ter desistido aos 15 anos, depois voltando aos 16 para explicar que ela havia mentido sobre ter desistido em virtude de constrangimento e que agora queria transição:

José foi inicialmente avaliado aos 10 anos (IQ = 104). Embora ele [sic] não tenha cumprido os critérios completos do DSM-III para o transtorno de identidade de gênero, ele tinha marcadamente uma identidade de gênero cruzada. Ele havia sido encaminhado pelas autoridades escolares por causa de sua efeminação e do ostracismo social que experimentava. Seus pais, que não falavam inglês, negavam que ele tivesse problemas e se recusaram a receber feedback. José foi encaminhado novamente pelas autoridades da escola aos 13 anos devido a preocupações semelhantes. Neste momento, José e seus pais eram mais receptivos a receber ajuda, mas eles não prosseguiram. Quando José foi visto para um acompanhamento inicial aos 15 anos, ele relatou ausência de disforia de gênero e uma orientação exclusivamente heterossexual [ginefílica]. Ele afirmou que ele tinha acabado de ser eleito presidente da turma e que ele havia recebido notas A’s em seu trabalho escolar; no entanto, ele não pôde fornecer documentação dessas reivindicações. Um ano depois, José solicitou uma consulta. Nesta época, ele se vestia e se passava socialmente como uma mulher. Ele abandonou a escola e fugiu de casa, e ele estava abusando de drogas recreativas e se envolvendo com prostituição. Ele relatou uma orientação exclusivamente homossexual [androfílica] e solicitou urgentemente a cirurgia de redesignação sexual. Ele afirmou que no acompanhamento inicial ele havia “mentido” sobre seus sentimentos porque ele tinha se “envergonhado”.

The Globe and Mail informaram em 2016 que outra menina trans que era atendida na clínica de Zucker e Bradley primeiro afirmou ser homem e gay aos 13 anos após uma extensiva pressão dos clínicos para se comportar como homem e, mais tarde, se assumiu como trans aos 15 anos, admitindo que havia ocultado seu gênero verdadeiro:

Quando o filho de Trish tinha sete anos de idade, ele declarou que Deus havia cometido um erro e que ele deveria ser uma menina. Ele sempre gostava de se vestir como suas irmãs com fantasias de princesa e não mostrava muito interesse em atividades tradicionais de meninos. “Deus não comete erros”, disse sua mãe. “Você é perfeito.”

Mas seus pais, que moravam em Toronto, estavam preocupados com ele, e depois de pesquisarem um pouco, eles foram encaminhados para o Dr. Zucker. Eles se encontraram com ele quatro vezes, mas nunca trouxeram seu filho. Eles sentiram que não seria um bom encontro, mas eles ficaram tranquilizados com o que o Dr. Zucker lhes dizia: seu filho provavelmente cresceria para ser gay. Trish, que pediu para sua família não ser identificada, diz que o Dr. Zucker disse que “era importante encorajar o nosso filho a se sentir mais confortável com o gênero que coincidisse com a sua biologia”. Ao mesmo tempo, Trish lembra: “queríamos que nosso filho fosse um menino. Então, aceitamos qualquer sugestão. … Quando ouvimos que ele é provavelmente gay, você não pode imaginar o alívio que sentimos.”

Aos 10 anos, no entanto, ele ainda estava incomodado, então eles voltaram para o CAMH; desta vez, eles não viram o Dr. Zucker na clínica, mas foram ver outro clínico para avaliar a ansiedade de seu filho. Esse clínico, eles lembram, consultou o Dr. Zucker. O conselho que receberam foi normalizar o comportamento masculino e reduzir as diversões femininas. Então eles foram para casa e removeram os trajes da princesa e seu pai tentou interessá-lo no karatê.

Seu filho não disse muito — ele não insistiu veementemente que era uma menina — e seus pais não falaram com ele sobre isso. Baseados na forma como eles interpretaram o conselho no CAMH, eles estavam preocupados em introjetar a ideia em sua cabeça. Mas Trish continuaria a encontrar roupas escondidas. À noite, seu filho se depilava enquanto dormia. Trish e seu marido sabiam que isso não poderia continuar. Aos 13 anos, quando seu filho se assumiu como gay, eles pensaram, felizmente, que o Dr. Zucker tinha razão.

Um ano depois, sua filha disse-lhes o que ela sentia há anos: ela era uma menina transgênera. Desta vez, seus pais a levaram para o Toronto’s Hospital for Sick Children onde a verdade foi revelada e ela recebeu bloqueadores de hormônios para atrasar a puberdade.

Ela finalmente disse a eles: “Em todos os aniversários, cada vez em que eu assoprava as velas, desejava ser uma menina”. Ela admitiu esconder figurinos e perucas para que ela não tivesse “problemas” e expressou raiva pelo fato de que seus pais haviam parado de lhe não lhe perguntar como ela estava se sentindo e de que eles haviam esperado tempo demais para iniciar o tratamento hormonal.

Mais notavelmente, Steensma & Cohen-Kettenis (2015) postularam que esses de-desistentes poderiam, de fato, constituir uma terceira via de desenvolvimento da disforia de gênero na infância. Entre as primeiras 150 crianças atendidas na sua clínica de identidade de gênero infantil e adolescente, 40 persistiram desde a infância até a disforia de gênero adolescente, enquanto 110 inicialmente pareciam desistir. No entanto, daqueles 110 desistentes aparentes, 5 voltaram a entrar na clínica com uma idade média de 24 anos:

Quatro (3 meninos e 1 menina ao nascimento) tentaram viver como pessoas gays ou lésbicas por um longo período de tempo, e 1 homem de nascença apresentou transtorno do espectro do autismo. Ele relatou que precisava resolver outros problemas em sua vida antes de poder lidar com sua disforia de gênero. Os outros relataram não ter nenhum problema em ser homossexuais. No entanto, depois de ter experiências íntimas e sexuais com parceiros do mesmo sexo (de nascimento), eles perceberam que viver como uma pessoa homossexual não resolveu seus sentimentos de disforia de gênero, que e eles se sentiam cada vez mais atraídos para a transição. Todos também mencionaram que eles estavam um pouco hesitantes em começar tratamentos invasivos, como terapia hormonal e cirurgias.

Os autores concluem

Os indivíduos com disforia de gênero que foram vistos na infância ainda são bastante jovens. Estudos que abrangem períodos de acompanhamento muito mais longos podem mostrar uma prevalência maior que 16% se indivíduos com persistência-após-interrupção forem incluídos.

Dados esses relatos, vale a pena considerar se as noções generalizadas de que as crianças disfóricas se tornarão adolescentes e adultos gays podem ser prejudiciais para esses jovens, pressionando inadequadamente o seu desenvolvimento e compreensão de seu gênero. É desconcertante que os casos hipotéticos de arrependimento de transição entre os jovens trans continuem a receber uma atenção excessiva da mídia e do público, mesmo que os casos observados de arrependimento pela não transição na adolescência pareçam ser muito mais comuns.

Referências

  • de Vries, A. L. C., & Cohen-Kettenis, P. T. (2012). Clinical management of gender dysphoria in children and adolescents: the Dutch approach. Journal of Homosexuality, 59(3), 301–320. [Abstract]
  • Steensma, T. D., Biemond, R., de Boer, F., & Cohen-Kettenis, P. T. (2011). Desisting and persisting gender dysphoria after childhood: a qualitative follow-up study. Clinical Child Psychology and Psychiatry, 16(4), 499–516. [Abstract]
  • Steensma, T. D., & Cohen-Kettenis, P. T. (2015). More than two developmental pathways in children with gender dysphoria? Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 54(2), 147–148. [Abstract] [Full text]
  • Steensma, T. D., McGuire, J. K., Kreukels, B. P. C., Beekman, A. J., & Cohen-Kettenis, P. T. (2013). Factors associated with desistence and persistence of childhood gender dysphoria: a quantitative follow-up study. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 52(6), 582–590. [Abstract]
  • Zucker, K. J., & Bradley, S. J. (1995). Gender identity disorder and psychosexual problems in children and adolescents. New York, NY: Guilford. [Google Books]

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Zinnia Jones é uma pesquisadora trans, escritora e ativista e a criadora do blog Gender Analysis. O seu trabalho centra-se em ideias sobre sociologia transgênera, saúde pública, transfeminismo e filosofia analítica. Ela atualmente escreve para blogs no The Orbit e já apareceu na CNN, Democracy Now e Autostraddle. Zinnia vive em Orlando, Flórida, com sua esposa e dois filhos, e trabalha em marketing de conteúdo.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.