Quando você coloca aspas na palavra cisgênero

Beatriz Pagliarini Bagagli
6 min readJan 30, 2018

Quando você coloca aspas na palavra cis, você implicitamente está colocando aspas na palavra trans. Mas o efeito é distinto: quando vc coloca aspas na palavra cis, você está se referindo ao próprio uso da palavra que seria considerado, seja por qual motivo for, inadequado; mas quando você faz este movimento e implicitamente coloca aspas na palavra trans, são as próprias vidas das pessoas trans que são postas sob dúvida, sob olhar reprovador e deslegitimador. São as vozes das pessoas trans que são postas em questionamento e estigmatização. Porque se trata de uma recusa de reconhecer, através do outro, uma diferença.

Quando falamos em homens e mulheres cis não estamos pressupondo que a concordância com as expectativas de gênero são absolutas. Tampouco estamos defendendo que as pessoas devam permanecer em concordância com as expectativas normativas em relação ao gênero. Quando usamos cis não desejamos que as pessoas aceitem acriticamente as normas de gênero e as ratifiquem. Estamos tão somente nomeando algo que até então funcionava pelo seu próprio mascaramento, ou seja, no que antes era tido como “natural” e “normal” e, portanto, intocável epistemologicamente.

Cis aponta, em última instância, tão somente para uma diferença em relação ao trans. Cis não significa algo em si mesmo, portanto, não pode significar concordância absoluta em relação às expectativas de gênero. Não existe concordância e discordância absolutos em relação ao gênero. O trans, neste sentido, também não denota uma suposta discordância absoluta em relação ao gênero.

As continuidades e rupturas em relação às expectativas de gênero não se dão de forma abstrata e absoluta como se pudêssemos apartar o cis do trans como entidades absolutamente distintas. Elas são sempre relativas, são sempre localizadas, contextualizadas e intersecionadas com diversos vetores sociais distintos. E são necessariamente dialéticas, ou seja, existe cis no trans e trans no cis: uma coisa não faz sentido sem a outra.

Não existe verdade por trás das identidades pessoas que poderíamos encontrar os significantes cis e trans apartados. Mas nós encontramos diferença, na forma como a sociedade se estrutura, na forma como se observam certos traços distintivos que se relacionam ao trânsito de gênero. Por isso falamos em cis e trans, para denunciar um funcionamento social específico que exclui, marginaliza e empobrece sistematicamente um grupo que é lido através destes traços que remetem ao trânsito de gênero.

É neste sentido que falamos em cis e trans. Não para remeter à estruturas absolutas e universais, mas para demarcar estrategicamente certas diferenças e darmos visibilidade politica a estas diferenças.

O valor da palavra cisgênero

Quem estuda linguística, irá de convir comigo que a significação de uma palavra está relacionada (ou mesmo subordinada) com o valor que um signo linguístico estabelece no sistema da língua. Isso é F. Saussure. O que é valor? O valor se refere às relações através das quais um signo é capaz de se diferenciar do outro, e, em Saussure, tais relações são de pura negatividade. A língua, dirá Saussure, é forma e não substância, ou seja, é uma forma pela qual recortamos sons (que se tornam significantes) e associamos ao plano das ideias (que se tornam significados). Tal processo constitui o signo em sua bifacialidade. Tais relações são capazes de produzir o que entendemos como sinonímia e antonímia, por exemplo. O que é essa negatividade e por que ela é importante? Porque ela diz respeito ao fato de que um signo só existe em “si” na medida da sua relação com outros signos num sistema — ou seja, ele não é capaz de significar em si mesmo.

Porque to dizendo tudo isso? Pra falar sobre como a palavra cisgênero significa.

Primeiro, assumimos que cisgênero é o antônimo de transgênero. Até ai tudo bem. Então para sabermos o que significa cisgênero precisamos saber o que significa transgênero, certo?

Dizemos frequentemente que transgênero significa “a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer”. Disso resulta que cisgênero só possa significar “a pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído”.

É a partir desse pequeno pulo do gato que pessoas cis começam a manifestar um desconforto subjetivo em relação a tal significação. Dizem as pessoas cisgêneras que nenhuma pessoa pode se identificar TOTALMENTE com o gênero atribuído ao nascimento, que portanto seria algo “inútil” falar em pessoas cis, em qualificar pessoas enquanto cisgêneras. Isso porque, neste caso, a cisgeneridade não existiria ontologicamente. Falar em cisgeneridade poderia ser inclusive interpretado como mais um forma de linguagem “politicamente correta”, num desejo de classificação pretensamente calcado numa ilusão de transparência e autonomia da própria identidade.

Mas a questão sobre a definição de “identificação” é secundária (porque não precisaríamos, a priori, centrar a definição de transgeneridade em termos de identificação, e há muitas formas teóricas através das quais podemos compreender os processos de identificação) e possui nuances. Primeiro: se ninguém é cis porque ontologicamente não existiria cisgeneridade quer dizer então que todas as pessoas são trans? Se ninguém é cis, há uma inflamação indevida do conceito, da identidade e dos sentidos de transgeneridade. Seria possível afirmar que “todo mundo é trans”? Em que medida isso seria possível e quais implicações políticas desta indistinção no que diz respeito ao reconhecimento das identidades trans? Como, em termos éticos e políticos, poderíamos sustentar essa indistinção? Começamos a vislumbrar o problema. Pessoas cis não querem se ver enquanto cis mas o sabem que são diferentes das pessoas trans. Talvez prefiram se manter na posição de suposta naturalidade e neutralidade enquanto que pessoas trans ocupem a posição de Outro. Elas não querem se ver enquanto portadores deste traço distintivo “cis” mas o sabem que algum outro traço necessariamente as distingue das pessoas trans — e alocam este traço para fora do pensamento, o excluem como traço significante, o que não deixa de produzir efeitos. O problema seria nomear o traço enquanto “cis” porque ele deixaria opaco o traço distintivo que funcionava até então pelo seu próprio apagamento. Podemos dar um nome a isto: denegação. A wikipédia define a denegação como “um mecanismo de defesa em que o sujeito se recusa a reconhecer como seu um pensamento ou um desejo que foi anteriormente expresso conscientemente”. Pessoas cis denegam a cisgeneridade na medida em que reconhecem tacitamente que não são trans ao mesmo tempo em que dizem que não se identificam “totalmente” com as expectativas de gênero que lhe foram atribuídas ao nascer com o intuito de se afastar imaginariamente deste traço. Uma forma específica de denegação da sua condição não-trans.

Ora, percebam que acreditar que a cisgeneridade implicaria uma identificação TOTAL com as expectativas de gênero é um pulo do gato que não se encontrava inicialmente presente na minha definição diferencial entre cis e trans. Posso pensar que toda forma de identificação funcione pela falha.

Dizer que existe identificação com as expectativas de gênero é muito diferente de dizer que essa identificação seja total ou absoluta, que ela não seja capaz de falhas, que ela não seja em si mesma contraditória. Eu posso trabalhar essa identificação em termos de nuance, em termos relativos, em termos de contradição constitutiva. Se trabalho o conceito desta forma, entendo que não há identificação absoluta na cisgeneridade nem quebra absoluta na transgeneridade. Há contradição propriamente. Há identificação sempre relativa com essas expectativas de gênero, de minha posição teórica enquanto transfeminista. Isso me ajuda a não jogar fora o conceito de cisgeneridade de forma assim tão apressada.

Dizer que exista uma identificação de pessoas cis com as expectativas de gênero impostas desde o nascimento é algo muito diferente de dizer que mulheres estariam se identificando com a “massacrante socialização feminina” (expressão que acabei de ver na página Todo dia uma rad passando vergonha com um texto diferente).

Quando defendemos o uso da palavra cisgênero é muito menos para pressupor uma determinada identificação sem falhas de pessoas cis do que dar visibilidade para a alteridade constitutiva em relação às pessoas trans. Ou seja: quando defendemos a utilização da palavra cis a defendemos na medida em que justamente não levamos a sério a ideologia que produz coerências e inteligibilidade quanto à posição cis. Quando defendemos a utilização da palavra cis nos colocamos numa posição de crítica à cisnormatividade. Dizemos cis justamente para podermos sermos trans. Dizemos cis para que possamos sermos trans sem o estigma da mentira e ilusão. Dizemos cis porque não acreditamos nos sistemas de verdade que alocam a cisgeneridade como ponto natural do gênero. Dizemos cis porque não acreditamos que pessoas cis sejam mais verdadeiras ou naturais que pessoas trans.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.