Ser efeminado e masculinizado são trejeitos naturais enquanto performar estereótipos de gênero é opcional e por isso não tem nada de revolucionário?

Uma reflexão sobre a influência do discurso feminista radical trans-excludente no discurso de homens homossexuais e em não conformidade de gênero.

Beatriz Pagliarini Bagagli
4 min readJun 20, 2020

Vamos abordar e analisar o seguinte post publicado no Facebook, de Jackson Ciccone:

TREJEITOS NÃO DEFINEM SEXUALIDADE — Há homens heterossexuais, homens bissexuais e homens homossexuais que são efeminados. Ser efeminado é um trejeito biopsicossocial, por exemplo, a voz aguda de alguns homens. Contudo, há uma diferença entre trejeito efeminado e estereótipos femininos. Os estereótipos femininos são um conjunto de estereótipos relacionado às mulheres, por exemplo, um homem que usa maquiagem não é necessariamente efeminado, mas sim um performer dos estereótipos femininos. Nem todo homem que performa os estereótipos femininos é efeminado ou homossexuais, no carnaval homens heterossexuais e bissexuais que performam estereótipos femininos e isso não os fazem efeminados ou homossexuais.

Ser masculinizado também é um trejeito biopsicossocial, há homens homossexuais, homens bissexuais e heterossexuais que são masculinizados. A voz grave da maioria dos homens é um exemplo desse trejeito. Há alguns homens que têm ambos os trejeitos. Nós precisamos compreender que ser efeminado e masculinizado são trejeitos naturais, performar estereótipos é opcional e não tem nada de revolucionário. Não podemos esquecer que maquiagem e salto alto eram objetos para homens. E por favor, não considere nada de transfóbico nessa postagem.

Ser efeminado não te torna “homonormativo”, ser homonormativo significa seguir o padrão de relacionamento entre pessoas do mesmos sexo. Deslegitimar os trejeitos naturais de uma pessoa em base de sua orientação sexual-afetiva também é gayfobia, pois estaria reforçando a idéia homofóbica de que “não existe gays másculos”, tanto da parte da feminilidade do homem heterossexual quanto da parte da masculinidade do homem homossexual. Vide a cultura do “macho” como forma de simbolificar uma imagem estereotipado do homem heterossexual e reforçar a masculinidade hegemônica a militância “anti-padrãozinha” das lacrianes militudas a ponto de querer problematizar e discriminar a masculinidade de homens gays como se fossem “falsas”.

Não se enganem, meus caros! Lacrianes e conservadores sempre serão a oposição da autêntica identidade gay, no fundo são farinhas do mesmo saco. Revolucionário é você se aceitar como você é, não importa se você é efeminado, masculinizado ou uma mescla de ambos.

Agora vamos começar com o seguinte enunciado do texto: “por favor, não considere nada de transfóbico nessa postagem.”

Humm, vamos considerar sim, que tal? Realmente não há transfobia explícita do texto. Mas muitas vezes o discurso discriminatório está implícito, isto é, nas entrelinhas. Recortamos algumas passagens mais problemáticas que serão desdobradas abaixo:

Nós precisamos compreender que ser efeminado e masculinizado são trejeitos naturais, performar estereótipos é opcional e não tem nada de revolucionário. […] Lacrianes e conservadores sempre serão a oposição da autêntica identidade gay, no fundo são farinhas do mesmo saco. Revolucionário é você se aceitar como você é.

Qual a necessidade de opor comportamentos que seriam “naturais” com aqueles que seriam “estereotipados” e assim, “opcionais” e “não naturais”? Será que se está implicitando que ser trans seria uma opção, tendo em vista a associação que frequentemente se faz entre identidades trans e estereótipos de gênero? Isso seria sim transfobia. Isso retoma muito de uma ideia de que “tudo bem você ser gay porque isso é natural, mas ser travesti é uma ofensa porque é uma opção”. É curioso notar também uma assimetria entre o que entraria como “estereótipo” de gênero, já que o próprio autor parece estar muito mais propenso em observar os comportamentos femininos como estereotipados, enquanto os eventuais estereótipos de masculinidade parecem nem serem cogitados pelo autor, e são facilmente subsumidos aos comportamentos tidos “naturais”.

Por trás desse “não tem nada de revolucionário em performar estereótipos” eu ouço a voz de uma feminista radical trans-excludente. Deixa eu dizer uma coisa que explorei exaustivamente na minha dissertação de mestrado: pessoas trans não querem ter suas identidades julgadas no interior de um parâmetro normativo de subversão de gênero. Nossos gêneros não precisam ser “revolucionários” para serem válidos. O que feministas radicais trans-excludentes entendem ser estereótipos de gêneros “opcionais” e “não revolucionários” são na verdade aspectos integrantes da vida de pessoas trans.

Qual a necessidade de designar “lacrianes” (?) como inimigas da “autêntica identidade gay”? Lacrianes não teriam essa identidade gay autêntica, por quê? Com base em que podemos dizer que certas identidades são autências e outras não?? Aliás, forçar que pessoas “se aceitem” faz parte recorrente de um discurso LGBTfóbico, especialmente transfóbico, porque retoma os sentidos de que pessoas trans supostamente “não aceitariam” seus corpos, o que é um equívoco e uma forma de estigmatizar pessoas trans. É justamente o contrário… é em função do fato de nos aceitarmos que nos permitimos sermos trans e “performarmos estereótipos de gênero”, retomando o vocabulário terfoso.

Jackson Ciccone conclui que revolucionário é se aceitar como efeminado, masculinizado ou uma mescla entre ambos. Ótimo, eu também concordo. Aliás, se uma tal “lacriane” tiver dito, como alega o autor, que a masculinidade de um homem gay é “falsa” eu também concordaria com a colocação crítica do autor, já que todas as expressões de gênero devem ser reconhecidas, e não deslegitimadas. Compartilho igualmente da ideia que “trejeitos” não definem sexualidade e que podem existir homens efeminados heterossexuais assim como podem existir homens homossexuais másculos. No entanto, o mesmo autor opõe esses comportamentos, que ele julga “naturais”, aos estereótipos de gênero. Como ele mesmo havia dito, não seria revolucionário performar esses estereótipos… e considerando que a identidade de pessoas trans é associada, mesmo equivocadamente, a tais “estereótipos”, vemos que o autor implicitamente exclui as identidades trans de uma possibilidade legítima de demanda por reconhecimento.

Esse post é um ótimo exemplo da influência sutil do discurso feminista radical trans-excludente na militância e discurso de homens gays.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.