Todos os jovens trans que usam bloqueadores de puberdade transicionam?

Por Zinnia Jones. Tradução de Beatriz Pagliarini Bagagli. Leia o texto original no Gender Analysis.

Beatriz Pagliarini Bagagli
9 min readJan 11, 2018

Os bloqueadores de puberdade são usados no tratamento de jovens transgêneros adequadamente diagnosticados que desejam evitar desenvolver caracteres sexuais secundários indesejadas de seu sexo atribuído, mas ainda não têm idade suficiente para se comprometerem com as mudanças permanentes da terapia hormonal. Esses medicamentos, que agora são administrados em hospitais e clínicas de gênero nos Estados Unidos, com o apoio de várias organizações médicas importantes, dão um tempo para os adolescentes considerarem se querem passar pela transição. Crucialmente, os bloqueadores da puberdade são totalmente reversíveis: qualquer jovem que, em última instância, escolha não transicionar pode interromper os bloqueadores, e sua puberdade original será retomada.

Mas nos últimos anos, alguns ativistas anti-trans alegaram que os bloqueadores da puberdade não deveriam ser considerados reversíveis, alegando que todos os jovens que tomam bloqueadores inevitavelmente transicionam. Outros especularam que esses medicamentos podem de algum modo afetar o desenvolvimento natural da identidade de gênero de uma criança, tornando mais provável que elas façam a transição quando elas de outra forma não a teriam feito. Michelle Cretella, presidente do grupo ativista transfóbico American College of Pediatricians, afirmou que “não há casos na literatura científica de crianças com disforia de gênero que descontinuam os bloqueadores”, e Paul McHugh co-autor de um artigo na The New Atlantis leva este argumento ao extremo:

A falta de dados sobre pacientes com disforia de gênero que pararam com os regimes de supressão da puberdade e retomaram o desenvolvimento normal levanta novamente a questão muito importante de que se esses tratamentos contribuem para a persistência da disforia de gênero em pacientes que poderiam, ao invés disso, ter resolvido seus sentimentos de ser do sexo oposto. Conforme mencionado acima, a maioria das crianças que são diagnosticadas com disforia de gênero acabará por parar de se identificar com o sexo oposto. O fato de a identificação cruzada de gênero persistir aparentemente para praticamente todos os que passam pela supressão da puberdade pode indicar que esses tratamentos aumentam a probabilidade da identificação de gênero cruzada do paciente persistir.

Tais preocupações trazem fortes questionamentos, mas poucas respostas. Como se verifica, essas alegações variam desde serem infundadas até serem explicitamente falsas, e já foram amplamente abordadas na literatura sobre o tratamento da juventude trans.

A afirmação de Cretella de que “não há casos na literatura científica” de jovens com disforia de gênero que escolhem interromper os bloqueadores é simplesmente incorreta. Tais casos foram relatados em numerosas publicações:

  • Tack et al. (2017) afirmam que um paciente designado pelo sexo masculino descontinuou o tratamento com bloqueador de puberdade “porque ele não queria mais prosseguir com a redesignação de sexo”.
  • Shumer, Nokoff, & Spack (2016) descrevem um caso de um paciente designado pelo sexo masculino que recebeu bloqueadores de puberdade aos 12 anos, mas “desenvolveu uma melhor compreensão de sua identidade de gênero” durante a terapia e optou por parar de tomar bloqueadores aos 14, retomando a puberdade masculina normal.
  • Lynch, Khandheria, & Meyer (2015) observam que um paciente designado pelo sexo masculino e outra pelo sexo feminino escolheram interromper o tratamento e retornaram a viver a partir do seu gênero original.
  • Khatchadourian, Amed, & Metzger (2014) observam que um paciente designado pelo sexo masculino “com gênero indeciso” interrompeu o uso de bloqueadores após 13 meses “já que ele escolheu não prosseguir com a transição”.

É evidente que não é o caso de que não exista conhecimento de jovens que escolhem retomar a sua puberdade original durante o uso de bloqueadores — esses casos estão realmente presentes em estudos de jovens com disforia de gênero submetidos a esse tratamento. Este é um descuido particularmente surpreendente de um médico que se representa como líder de uma organização profissional de pediatras.

Mas poderia ainda ser o caso de que o tratamento com bloqueadores de puberdade torne mais provável que esses jovens conservem sua identidade transgênera, enquanto que se experimentassem sua puberdade original alguns deles adotariam a identidade cisgênera? Isso também é improvável. Os clínicos não administram bloqueadores até que esses jovens tenham atingido o estágio Tanner 2 ou 3 de de sua puberdade original. A reação de um paciente a essas mudanças — se seu sofrimento relacionado ao gênero começa a diminuir, ou piorar com a chegada de algumas características sexuais secundárias iniciais do sexo atribuído — é considerado de valor para esclarecer a persistência da sua disforia de gênero e se eles deve continuar a receber tratamento (de Vries & Cohen-Kettenis, 2012):

Se os critérios de elegibilidade forem cumpridos, os análogos de hormônio de liberação de gonadotropina (GnRHa) para suprimir a puberdade são prescritos quando o jovem atinge o estágio Tanner 2–3 da puberdade; isso significa que a puberdade acabou de começar. A razão para isso é que nós assumimos que experimentar a própria puberdade é útil para o diagnóstico porque, logo no início da puberdade, fica claro se a disforia de gênero irá se abster ou persistirá.

Além disso, em entrevistas com 17 equipes de tratamento especializadas em jovens com disforia de gênero, a maioria não endossa a preocupação de que os bloqueadores da puberdade possam interferir no desenvolvimento da identidade de gênero (Vrouenraets, Fredriks, Hannema, Cohen-Kettenis, & de Vries, 2015):

No entanto, embora a maioria dos informantes tenha concordado com o fato de que o tratamento com a supressão da puberdade pode de fato mudar a forma como os adolescentes pensam sobre si mesmos, a maioria deles não pensou que a supressão da puberdade inibe a formação espontânea de uma identidade de gênero que é congruente com o gênero atribuído após muitos anos tendo uma identidade de gênero incongruente.

Esses clínicos também observaram que já existe um “grupo de controle” de jovens cisgêneros que recebem bloqueadores da puberdade — aqueles com puberdade precoce — e que esse tratamento não parece induzi-los a adotar uma identidade transgênera:

Vários endocrinologistas fizeram a comparação com a puberdade precoce; uma condição médica em que os bloqueadores da puberdade foram usados por muitos anos e nenhum caso de DG (disforia de gênero) foi descrito (pelo menos para o conhecimento deles).

Além disso, a evidência atual dos efeitos dos bloqueadores de puberdade na função cerebral dos adolescentes disfóricos não fornece suporte à noção de que este tratamento torna a identificação transgênera mais provável — uma possibilidade que os pesquisadores reconhecem explicitamente (Staphorsius et al., 2015):

Ademais, nós esclarecemos uma preocupação que surgiu entre os clínicos: se o tratamento com GnRHa incitaria os adolescentes com DG (disforia de gênero) na direção de seu gênero experienciado. Não encontramos nenhuma evidência para isso e, além disso, descobrimos que a supressão da puberdade parecia mesmo fazer alguns aspectos do funcionamento cerebral ficar mais de acordo com o sexo de nascimento.

As críticas ao tratamento de bloqueio da puberdade com base na afirmação de que todos os jovens tratados passam à transição levantam uma questão importante ainda não respondida: qual a proporção desses jovens que eles acreditam que deveriam passar pela transição? Em vez de alegadamente 100% continuando em um caminho para a transição, esse valor seria de apenas 95%? 80%? 50%? Ao considerar essas possibilidades, o caráter de faca de dois gumes desta crítica torna-se claro: se apenas 80% desses jovens evoluíssem para a transição, então poderia argumentar-se que os clínicos diagnosticaram mal 20% desses jovens. Se apenas 50% continuassem em sua transição, então pior seria para a qualidade dos procedimentos diagnósticos dos clínicos.

Esses críticos não parecem ter permitido a possibilidade de que a triagem diagnóstica de jovens disfóricos pudesse ser altamente precisa na grande maioria dos casos. Essas avaliações diagnósticas e critérios são até muito abrangentes e rigorosos, geralmente incluindo uma entrevista detalhada da criança e dos pais, bem como uma bateria de testes psicológicos (Spack et al., 2012):

Pacientes considerados elegíveis para intervenção médica (análogos de GnRH e/ou hormônios cruzados), primeiro se encontram com um psicólogo, juntamente com seus pais, para uma entrevista clínica estruturada, abrangente e focada na identidade de gênero e uma análise psicométrica (Tabela 2). O protocolo psicológico foi adaptado da rede Adolescent Gender Identity Research para avaliar o grau de disforia de gênero, condições psiquiátricas coexistentes e estabilidade psicossocial.

Em qualquer caso, esses critérios podem ser mais rigorosos do que o necessário, errando no sentido de excluir para o lado de fora equivocadamente alguns jovens transgêneros ao invés de incluírem alguns jovens cisgêneros. Isto ficou claro desde o início do uso de bloqueadores da puberdade para tratar adolescentes disfóricos na Holanda (Smith, van Goozen, & Cohen-Kettenis, 2001):

Em comparação com os adultos, os adolescentes que iniciam o tratamento antes dos 18 anos possuem critérios adicionais para a elegibilidade do tratamento. Como conseqüência, os pacientes selecionados para tratamento precoce estão entre os transexuais que funcionam melhor. … Parece ser possível evitar falsos positivos ao seguir procedimentos de diagnóstico cuidadosos. … Embora psicopatologia possa ser resultado, e não um problema subjacente ao TID (transtorno de identidade de gênero), CR (cirurgia de redesignação) também pode ser procurada como uma solução de para problemas não relacionados ao gênero. O tratamento hormonal inicial antes da idade adulta não deve ser considerado quando muitos fatores adversos operam simultaneamente, apesar da possibilidade de os candidatos serem realmente transexuais. Isso ocorre porque é mais complicado fazer um diagnóstico preciso em adolescentes problemáticos do que em adolescentes que funcionam bem, mesmo para equipes multidisciplinares experientes.

Os jovens transgêneros que recebem tratamento com bloqueadores de puberdade são conhecidos por melhorarem os resultados de saúde mental e terem melhor qualidade de vida (Crall & Jackson, 2016), enquanto aqueles cuja disforia de gênero permanece não tratada correm o risco de depressão, automutilação e comportamento suicida (Radix & Silva, 2014). É teoricamente possível que algum número marginal desses jovens possa ser, em vez disso, cisgênero e serem “empurrados” para um tratamento cujo limite é a transição? Possivelmente. Existe atualmente alguma evidência de que tal fenômeno está acontecendo? Não — e certamente não há evidências suficientes para justificar a postergação do tratamento necessário de jovens que estão sofrendo no presente com base na chance de que possamos hipoteticamente receber um número pequeno de pessoas cis adicionais neste grupo em algum ponto indeterminado no futuro.

Referências

  • Crall, C. S., & Jackson, R. K. (2016). Should psychiatrists prescribe gender-affirming hormone therapy to transgender adolescents? AMA Journal of Ethics, 18(11), 1086–1094.
  • de Vries, A. L. C., & Cohen-Kettenis, P. T. (2012). Clinical management of gender dysphoria in children and adolescents: the Dutch approach. Journal of Homosexuality, 59(3), 301–320.
  • Khatchadourian, K., Amed, S., & Metzger, D. L. (2014). Clinical management of youth with gender dysphoria in Vancouver. Journal of Pediatrics, 164(4), 906–911.
  • Lynch, M. M., Khandheria, M. M., & Meyer, W. J. III. (2015). Retrospective study of the management of childhood and adolescent gender identity disorder using medroxyprogesterone acetate. International Journal of Transgenderism, 16, 201–208.
  • Radix, A., & Silva, M. (2014). Beyond the guidelines: challenges, controversies, and unanswered questions. Pediatric Annals, 43(6), e145–e150.
  • Shumer, D. E., Nokoff, N. J., & Spack, N. P. (2016). Advances in the care of transgender children and adolescents. Advances in Pediatrics, 63(1), 79–102.
  • Smith, Y. L. S., van Goozen, S. H. M., & Cohen-Kettenis, P. T. (2001). Adolescents with gender identity disorder who were accepted or rejected for sex reassignment surgery: a prospective follow-up study. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 40(4), 472–481.
  • Spack, N. P., Edwards-Leeper, L., Feldman, H. A., Leibowitz, S., Mandel, F., Diamond, D. A., & Vance, S. R. (2012). Children and adolescents with gender identity disorder referred to a pediatric medical center. Pediatrics, 129(3), 418–425.
  • Staphorsius, A. S., Kreukels, B. P. C., Cohen-Kettenis, P. T., Veltman, D. J., Burke, S. M., Schagen, S. E. E., . . . Bakker, J. (2015). Puberty suppression and executive functioning: an fMRI-study in adolescents with gender dysphoria. Psychoneuroendocrinology, 56, 190–199.
  • Tack, L. J. W., Heyse, R., Craen, M., Dhondt, K., Vanden Bossche, H., Laridaen, J., & Cools, M. (2017). Consecutive cyproterone acetate and estradiol treatment in late-pubertal transgender female adolescents. Journal of Sexual Medicine, 14(5), 747–757.
  • Vrouenraets, L. J. J. J., Fredriks, A. M., Hannema, S. E., Cohen-Kettenis, P. T., & de Vries, M. C. (2015). Early medical treatment of children and adolescents with gender dysphoria: an empirical ethical study. Journal of Adolescent Health, 57(4), 367–373.

Zinnia Jones é uma pesquisadora trans, escritora e ativista e a criadora do blog Gender Analysis. O seu trabalho centra-se em ideias sobre sociologia transgênera, saúde pública, transfeminismo e filosofia analítica. Ela atualmente escreve para blogs no The Orbit e já apareceu na CNN, Democracy Now e Autostraddle. Zinnia vive em Orlando, Flórida, com sua esposa e dois filhos, e trabalha em marketing de conteúdo.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.