Escapar à opressão nunca foi uma “escolha”: o que é a perspectiva materialista da transgeneridade

Beatriz Pagliarini Bagagli
11 min readJul 29, 2017

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Decidi estrear este espaço com a republicação de 3 textos meus que se conversam intimamente, possuindo uma articulação recíproca de questões. Todos foram publicados para as Blogueiras Feministas.

O primeiro, sobre as nossas identidades. Frequentemente é jogada na cara das pessoas trans que as nossas identidades, uma palavrinha que não por acaso é tão utilizada pelo grupo como forma de reivindicação de direitos, seria uma palavra faltosa, insuficiente ou perigosa. “Gênero não é identidade”, dizem alguns, a partir tão somente do momento em as pessoas trans reivindicam suas identidades DE gênero como forma de reconhecimento e luta política. O segundo, juntamente articulado com o terceiro, aborda a necessidade de superação da ideia de que a luta de pessoas trans se funda e se realiza necessariamente sob os moldes do liberalismo ou do individualismo. É na medida em que assumimos a gênese da transfobia como prévia à contingência das vivências individuais — assumindo uma perspectiva materialista — que passamos a compreender que o cissexismo não é acessório ao funcionamento das relações de gênero, e sim uma engrenagem constitutiva, parte necessária da estrutura.

Com a republicação destes textos eu espero que as pessoas trans encontrem argumentos para fundamentar críticas a uma forma tão recorrente e espontânea de compressão da existência de pessoas trans, em especial, de mulheres trans e travestis: a culpabilização da vítima. Neste caso, a culpa recai sobre nossas formas de existir em desconformidade em relação à cisgeneridade. Defender a viabilidade de nossas vidas trans nunca nos foi opcional.

As materialidades das identidades

A partir do momento em que nossa sociedade se estrutura através de normas de gênero e sexualidade que elegem a heterossexualidade, monossexualidade, cisgeneridade, alossexualidade, masculinidade e a binaridade como destinos esperados de todos os indivíduos, não podemos dizer que falar sobre identidades homossexuais, bissexuais, transgêneras, assexuais, femininas e não binárias seja algo da esfera do puramente individual.

Se a sua identidade é tida como um tabu social, ela é objetivada enquanto uma questão social. Se uma identidade funciona como tabu, é porque ela é implicada, pela sua própria exclusão ou recalcamento, no funcionamento “normal” da estrutura social.

Eu não entendo porque ainda em hoje em dia tem gente que a acha que falar sobre binarismo, bifobia, transfobia ou certos assuntos não tem “materialidade” suficiente.

Sim, pode ser que existam análises não materialistas sobre esses assuntos; mas o que eu quero demarcar é que é urgente falar sobre esses assuntos a partir de uma teoria feminista materialista das identidades e devires minoritários. Se é correto afirmar que possam existir análises não materialistas destes assuntos, é igualmente incorreto afirmar que uma análise seria necessariamente não materialista apenas por tratar deles. Isso seria o mesmo que abdicar da própria teoria materialista que se julgava reivindicar. Não faz sentido nenhum afirmar isso se nós entendemos que a materialidade da nossa sociedade se estrutura através de normas que concernem a estes vetores minoritários. Não faz sentido falar que certos assuntos sociais — como os objetos de nossa teoria — não teriam materialidade.

Foto da página Trans Student Educational Resources.

Falar sobre essas formas de identidade é desde sempre uma questão política. Então eu não entendo porque algumas questões são vistas como supostamente menos “materiais” que outras; mais “individualistas” que outras; mais “pós-modernas” que outras.

Materialidade, como eu já disse, não é questão de estar mais ou menos presente como um determinado conteúdo em nossas análises; materialidade não é sobre conteúdos e assuntos que seriam “mais ou menos” materiais; materialidade, ao contrário, é a FORMA como o todo das análises são feitas. Todos os assuntos relevantes para a teoria materialistas são materiais. E por isso não faz sentido opor identidade/subjetividade a materialidade/objetividade. Como eu disse: se a sociedade se estrutura necessariamente através da gestão de certas identidades, falar sobre essas identidades se objetiva como uma questão social.

Falar sobre identidades não significa que estamos levando uma perspectiva que toma as identidades como pairando no ar, que se fundariam sob um sujeito dono de si, criador de suas identidades num vácuo. Falar sobre identidades não implica considerar as identidades como fundadoras da realidade social. Nós podemos compreender como a realidade social estrutura certas formas de identidade (ou seja, como ela as materializa). A identidade emerge necessariamente através de um contexto histórico, cultural e político específicos e determinados.

Acontece que todos esses determinantes não são capazes de serem deterministas: a história não é um jogo de cartas marcado; a sociedade é feita de inúmeras divisões, não é homogênea e o político atesta que as relações de poder são inerentemente instáveis, ou seja, elas podem mudar de acordo com o tempo. Ou seja: afirmar que existem determinantes não implica considerar que a história, o social e o político são deterministas, porque há jogo possível para a luta e transformação social a partir da resistências das minorias. E aqui, falei sobre minorias do campo do gênero e sexualidade: isso implica considerar que estes devires minoritários são capazes de resistirem a estas normas sociais, ao proporem formas outras e diferentes de constituição de subjetividade.

O cissexismo é fundante e estruturante das normas de gênero

A identidade de gênero das pessoas se objetiva enquanto fato social não pela categoria de indivíduos, mas porque a estrutura das normas de gênero (enquanto fato social exterior a qualquer indivíduo) estabelecem que a identidade dos indivíduos deve ser cisgênera, heterossexual, etc…

As normas de gênero, além de heterossexuais, são cisgêneras. O cissexismo não é violência que pessoas trans sofrem enquanto indivíduos pontuais em razão da externalização das suas identidades; o cissexismo atua de forma prévia a casos de violência contingentes e eu vou explicar o porquê. A atuação do cissexismo, portanto, é estruturante e fundante das normas de gênero que causam violência.

O argumento que diz que a causa das pessoas trans ou o transfeminismo é “subjetivista” apela, na verdade, através justamente de um argumento liberal, já que a categoria de análise que se está usando para negar a existência da transfobia como estruturante das normas de gênero é a de indivíduos. Quando se diz que mulheres trans são homens em virtude de um desígnio dado as nascer se está apelando para a existência individual de pessoas trans (em especial, apelando para uma vaga imagem sobre “mulheres trans não transicionadas”) não enquanto classe de pessoas.

Para uma perspectiva materialista, ao contrário, pessoas trans se configuram enquanto “classe” ou grupo social na medida em que existe transfobia (assim como pelo fato de ser este o grupo que resiste à esta opressão e propor a transformação e superação desta realidade), e na medida em que existe transfobia, a existência de pessoas trans é questionada, causando marginalização deste grupo. Ou seja, independentemente da existência pontual de pessoas trans, existe a interdição prévia, em nossa sociedade, de que pessoas possam ser trans!

Protesto “Me deixem fazer xixi em paz”. Foto: Alexandre Calanca.

É aí que reside simultaneamente o cissexismo e a naturalização e justificação da transfobia. A transfobia, compreendida por esta perspectiva, não é portanto gerada a partir da existência de indivíduos lidos como trans e dos casos pontuais de violência que daí resultam; já que ela existe externamente e anteriormente à existência dos indivíduos, ela sustenta de forma prévia a naturalização e a justificação destas mesmas violências. A gênese da transfobia não reside no olhar do agressor que enxerga uma pessoa trans enquanto trans e torna a violência transfóbica em ato só a partir disto; a gênese da transfobia está previamente inscrita a qualquer ato contingente, pois é o que, além de orientar o ato, justifica, sustenta e naturaliza a violência. É assim que as violências se tornam sistemáticas, pela inscrição da transfobia no próprio funcionamento das normas de gênero. Só existe a violência transfóbica a partir de um regime que estrutura previamente o cissexismo como base de normas de gênero; este regime estruturado, por sua vez, está inscrito e diluído por todo o tecido social.

O discurso trans-excludente é liberal porque impede a compreensão das pessoas trans enquanto grupo; e justamente há a compreensão de pessoas trans enquanto indivíduos tanto no intuito de culpabilizar as violências pelas quais elas estão expostas quanto no intuito de deslegitimar as lutas por direitos dessa população.

Pra quem quiser ler sobre como falar de identidade não se contrapõe com falar sobre materialidade — já que justamente a identidade É material, recomendo ler o texto de Éris Grimm, “Sobre o corpo e a dicotomia entre subjetivo e material” e o meu último texto publicado por aqui, “As materialidades das identidades“.

Vemos com muita frequência discursos trans-excludentes que afirmam que gênero é uma entidade de poder que se baseia tão somente na biologia como um dado previamente estabelecido. De fato, o poder machista se apodera dos corpos como forma de controlá-los, mas a categoria de análise que nós enquanto feministas temos que acionar para a compreensão deste fenômeno não é da biologia, mas sim categorias provenientes de um trabalho teórico que se inscreve no âmbito de uma teoria de cunho social e histórico. Apelar para a universalização de uma suposta condição de “macho” para invalidar a identidade feminina de mulheres trans só se sustenta a partir de uma perspectiva que toma como categoria de análise fundante o indivíduo.

Há uma sobreposição equívoca entre as categorias que se utiliza para a análise crítica e o fenômeno que se pretende criticar quando se toma as relações hierárquicas de poder enquanto reflexo de uma realidade biológica. Vejam bem, o discurso que afirma que o transfeminismo é “subjetivista” é, em si mesmo, subjetivista, pois só pode fazer isso a partir do momento em que se toma para si uma categoria de análise liberal centrada em uma biologia do indivíduo trans.

Essa falsa perspectiva materialista que julga supostamente criticar a causa de pessoas trans como liberal é em si mesma liberal porque ela in-compreende a existência de pessoas trans; esta falta de compreensão se dá sobretudo através do aparecimento sub-reptício da questão da transição de pessoas trans como uma categoria de análise que se dá de forma, justamente, liberal com um teor culpabilizante.

Um dos argumentos usados para dizer que transfeminismo seria liberal usa da ideia de que, se mulheres trans podem, enquanto indivíduos, não transicionar, poderiam supostamente se beneficiar estruturalmente do machismo como homens. Percebam que tal argumento ignora que a transfobia é FUNDANTE e ESTRUTURANTE das normas de gênero, independentemente de existirem mulheres trans não transicionadas enquanto indivíduos; apelar para isso não prova nem desmente nada em relação a existência da transfobia como fato estruturante das violências de gênero e não poderia ser mobilizado, portanto, como categoria de análise materialista já que se sustenta na concepção da violência contra pessoas trans como acontecimento contingente. O fato de mulheres trans não poderem transicionar sem sofrerem violência prova justamente a existência da transfobia, e não o contrário.

A gênese da transfobia

Quando dizem por aí que opressão “não se escolhe” no intuito de desconsiderar a legitimidade das identidades trans, desconfie — afinal, pessoas trans também não escolhem sofrer transfobia! Vou explicar o porquê: tudo tem a ver com duas concepções distintas da gênese da transfobia. Uma concepção individualista/liberal e outra materialista/estrutural desta gênese. O mais irônico de toda essa “polêmica” é que justamente uma concepção individualista/liberal acerca da transfobia se reivindica enquanto materialista/estrutural e até mesmo em nome de um “feminismo radical”. Vou explicar o porquê de todo esse imbróglio.

Vemos sistematicamente a tentativa de pessoas em nome de um feminismo trans-excludente de denunciar que o reconhecimento de mulheres trans enquanto mulheres seria algo “perigoso” e “mentiroso” para o feminismo. O argumento dessas pessoas que se reivindicam “feministas radicais” seria de que, como a identidade de mulheres trans se dá enquanto uma “escolha individual”, a transição como ponto de origem de toda a transfobia, a transfobia não poderia se configurar enquanto uma opressão. Ou seja: esta perspectiva, que supostamente se intitula enquanto materialista, toma como ponto de partida a categoria de indivíduo para a compreensão da gênese da transfobia, já que toda forma de violência contra este grupo de pessoas estaria vinculada a este momento fundante da transição de gênero de indivíduos.

Esta perspectiva não consegue compreender as pessoas trans enquanto grupo social, mas tão somente enquanto indivíduos que, em suas individualidades, sofreriam violência em virtude da transição. Nesta perspectiva, transfobia seria tão somente um efeito secundário de uma opressão subjacente que ocuparia uma posição de hierarquia, ou seja, a transfobia não é compreendida no seu funcionamento estrutural e estruturante das normas sociais quanto ao gênero. A perspectiva liberal/individualista, portanto, é um verdadeiro obstáculo epistemológico para a compreensão da materialidade da transfobia e das identidades trans.

SP — 20ª edição Parada do Orgulho LGBT, com o tema: Lei de Identidade de Gênero Já! Todas as pessoas contra a transfobia. Foto de Rovena Rosa/Agência Brasil.

Tal concepção individualista, percebam, funciona como uma luva para discursos de culpabilização da vítima. Se a gênese da transfobia se dá tão somente em virtude de sujeitos que transicionam, que individualmente se colocariam à margem das normas de gênero, subjaz aí necessariamente, portanto, uma concepção de subjetividade trans bastante específica: de que se tratariam de sujeitos “loucos”, “fetichistas”, que supostamente estariam sendo “enganados” por uma ideologia mentirosa quanto ao gênero, já que em última instância, o processo de subjetivação fora das normas cis nem ao menos faria sentido. Não faz sentido alguém “querer” ser oprimido e portanto, não faz sentido existir pessoas trans na sociedade. Toda concepção liberal/individual da transfobia tem em si subjacente uma concepção de subjetividade trans como patológica ou abjeta; a insistência em dizer que pessoas trans são mero resultados de fetiches, transtornos psicológicos ou de estruturas sociais opressoras demonstra isto. Tal concepção objetifica os sujeitos trans (destituindo a condição de sujeito para tais sujeitos), já que desconsidera o caráter revolucionário e de resistência por parte desses sujeitos, desta forma, mobiliza um discurso de tutela para com estes sujeitos — os discursos da “cura” da transexualidade, por exemplo.

Partindo para uma concepção materialista/estrutural da transfobia requer de nós uma ruptura epistemológica que faz deslocar de local a questão da existência trans enquanto “sem sentido”: o transfeminismo, enquanto crítica materialista da cisnormatividade irá realocar esta questão como forma específica de como a opressão funciona. Com isso quero dizer: tomar como evidência de que a existência de pessoas trans não faz sentido, é, por si só, uma forma de opressão que naturaliza e legitima as formas de violência transfóbicas mais explícitas: assassinatos, exclusão, negação de direitos fundamentais, como saúde, moradia, educação. O transfeminismo é o movimento de reconhecimento de que as vidas trans fazem sentido: para tanto, temos que disputar o debate público contra discursos transfóbicos que julgam nossas vidas enquanto sem sentidos. Isto porque justamente o discurso de ódio contra determinados grupos se baseia na noção de que, por não terem sentidos, vidas podem ser exterminadas e vilipendiadas.

A concepção transfeminista da transfobia compreende, portanto, essa forma de opressão como efetivamente um vetor de opressão. A gênese da transfobia se dá, nesta perspectiva, no próprio funcionamento das normas de gênero, não enquanto um mero efeito secundário de uma opressão machista subjacente, mas enquanto vetor fundamental do funcionamento destas normas. A gênese da transfobia não se realiza, tampouco se observa, a partir do momento da transição dos indivíduos trans; a gênese está inscrita no próprio funcionamento das normas que naturaliza e justifica previamente estas violências, e isto se dá independentemente à contingência das trajetórias individuais dos sujeitos no que tange às suas transições de gênero.

Enquanto socialmente as identidades trans forem tidas como tabus, as identidades trans e a discussão no que tange às formas de subjetivação dos indivíduos irão se objetivar enquanto um fato social. Enquanto as identidades trans forem vistas enquanto impossibilidades de serem vividas em sociedade, não estaremos livres das amarras das opressões. Enquanto justificarem e legitimarem a violência e exclusão contra pessoas trans, o transfeminismo será necessário.

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Beatriz Pagliarini Bagagli
Beatriz Pagliarini Bagagli

Written by Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.

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