Vamos falar de “socialização”, coisa boa né… #sqn

Beatriz Pagliarini Bagagli
4 min readFeb 21, 2019

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“A real é que mulheres trans cresceram com toda a dor, a confusão e o abuso mas também com muito incentivo físico e mental, muito maior que qualquer mulher cis jamais recebeu enquanto tava crescendo. E é um privilégio que o povo tem que aprender a reconhecer, caralho. Dor não é privilégio, ÓBVIO. Mas ter apoio e incentivo para praticar atividades físicas, para estudar, para sair, basicamente pra tudo que pessoas afabs nunca tiveram um pingo de estimulo social é um puta privilégio sim.”

Isso se trata de uma réplica a um post recém compartilhado falando sobre o fato de meninas trans crescerem como meninas trans:

“Meninas trans cresceram como meninos-” meninas trans cresceram como meninas trans, porque a experiência de crescer como um indivíduo transfeminino é uma experiência por si só, diferente da infância de meninos e meninas cis, uma parte de nossas vidas lotada com confusão e dor e abuso. (Via Alexis Gorman).

Percebam aqui como afirmar isso não é nada tautológico, pois se opõe a ideia frequentemente espalhada pelo feminismo radical de que meninas trans foram criadas e cresceram como meninos e por isso teriam privilégio masculino decorrente de “incentivos” positivos à auto-imagem que concerniria a áreas tão diversas como aspectos corporais físicos e intelectuais (“praticar atividades físicas, estudar, sair, basicamente tudo”).

Em suma, a ideia de que a todos os indivíduos assignados como meninos ao nascimento são simplesmente despejados “incentivos” positivos no que concerne ao seu desenvolvimento enquanto indivíduo, isso vai desde o encorajamento a sei lá, “explorar o mundo” e aprender matemática e estudar.

A ideia de que “incentivos” são simplesmente despejados nos indivíduos está na base da noção de “socialização masculina” homogênea, imutável, indelével e infalível (quem nunca leu “socialização não falha”?). Isso permite fazer uma comparação com a “socialização feminina”: a socialização feminina obviamente não apenas estará em “desvantagem” em relação aos tais incentivos da socialização masculina como acarretará violências misóginas diversas.

Acontece uma coisa: socialização não funciona simplesmente como um depósito de “incentivos” sobre os indivíduos, e os benefícios que uma criança pode obter dos “incentivos” associados a uma “socialização masculina” não decorre automaticamente de uma atitude passiva frente a tais estímulos de socialização, eles requerem necessariamente que o indivíduo internalize e corresponda às expectativas normativas e manifeste assim ausência de resistência ou questionamento crítico.

Não há a construção de nenhum imaginário de incentivo ao desenvolvimento de meninos afeminados e/ou meninas trans enquanto meninos afeminados e/ou meninas trans. O imaginário normativo sobre a “socialização de gênero” simplesmente não comporta, não reconhece a existência de meninos afeminados e/ou meninas trans, essas crianças não são recompensadas com incentivos se não corresponderem PREVIAMENTE à masculinidade CISgênera. Tais “incentivos” estão condicionados previamente ao cumprimento de expectativas de masculinidades que são necessariamente cisgêneras. Corresponder ao imaginário de masculinidade é requisito para estímulos positivos vindos de uma socialização masculina. Meninos afeminados precisam simplesmente deixarem de serem afeminados para se enquadrarem no modelo de reconhecimento pressuposto na “socialização masculina” e isso por si só é uma violência, meninas trans simplesmente não podem ser meninas trans. Antes de serem “incentivados” a estudarem e praticarem atividades físicas meninos afeminados e meninas trans são “incentivados” a simplesmente deixarem de ser quem são.

Enfim, eu espero que as pessoas se questionem quais travestis e pessoas trans tiveram que tipo e em quais circunstâncias “apoio e incentivo para praticar atividades físicas, para estudar, para sair, basicamente pra tudo”. Que tipo de “apoio e incentivo” uma travesti que foi expulsa de casa, não completou o ensino básico e não consegue ingressar no mercado de trabalho formal pode (e pôde, sobretudo) ter?

O que se entende por “socialização de gênero” pressupõe necessariamente o cumprimento com as expectativas da cisgeneridade, há uma demanda subjetiva implícita aí. Esta demanda por conformidade de gênero está inscrita na forma como gênero funciona socialmente, não é algo acessório, indiferente ou excepcional. O cumprimento subjetivo dessas demandas é, vejam só, ESTRUTURAL e MATERIAL.

Quando se utiliza um entendimento de socialização como um depósito de incentivos sociais resultado de relações de estímulo e resposta podemos não darmos conta do caráter estruturante desta demanda subjetiva pelo alinhamento de gênero. Subjetivo não se opõe a estrutural ou material. O erro da concepção de socialização de gênero tão difundida em feminismo radicais reside na ausência da compreensão da cisgeneridade como um sistema de opressões de gênero nas análises, como se pudêssemos criticar os efeitos da socialização de gênero sem criticarmos concomitantemente a cisgeneridade compulsória e como as normas de gênero cisgêneras funcionam socialmente e são estruturantes da socialização.

Se estamos falando de cisgeneridade estamos falando sobre normas cisgêneras de reconhecimento, e quando falamos sobre normas cisgêneras questionamos precisamente o fato de que pessoas não deveriam corresponder às expectativas cisgêneras para serem “incentivadas” a experiências que julgamos serem benéficas para o desenvolvimento individual tais como “praticar atividades físicas, estudar, sair, basicamente tudo”.

Sobre socialização de gênero, leia também:

Afinando a noção de “socialização” e refutando algumas distorções

Afinal, mulheres trans tiveram uma socialização masculina?

Tropos Transfóbicos Nº 7 — Socialização Infantil

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Beatriz Pagliarini Bagagli
Beatriz Pagliarini Bagagli

Written by Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.

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