É preciso lembrar que transfobia é crime? Sobre o artigo “Lacração e loucura”, de Carlos Ramalhete publicado na Gazeta do Povo

Compreendendo o porquê do artigo de Ramalhete atacar diretamente a dignidade das pessoas trans — e porquê a Gazeta do Povo deveria ser responsabilizada legalmente.

Beatriz Pagliarini Bagagli
8 min readAug 2, 2020

Carlos Ramalhete, no artigo “Lacração e loucura”, publicado na Gazeta do Povo, se refere sistematicamente a Thammy Miranda no feminino, chamando-o de “pobre filha de uma cantora”; “moçoila” e “besteira de gênero”. Thammy, todos sabem, é um homem transexual e recentemente fez uma campanha publicitária para o dia dos pais da Natura. Segundo Ramalhete, Thammy se submeteu a “cirurgias mutiladoras” e “venenos hormonais”. Com isto, o comentarista entende que toda pessoa transgênera que realiza uma alteração corporal se mutila ou se envenena com hormônios.

Alega ainda que Thammy seja uma “pobre moça com problemas mentais sérios ao ponto de mutilar-se para se parecer com o Carlos Bolsonaro”. Para terminar, Thammy só poderia ser uma pessoa extremamente doente segundo ele pois apenas alguém com “autoimagem doentia prefere tornar-se sósia do Carlos Bolsonaro a continuar só feiosinha como era”. Acho que Ramalhete não realiza muitos esforços em esconder que a intenção do seu texto é atacar e ferir a dignidade não apenas de Thammy, mas de todas as pessoas transgêneras, transexuais ou travestis.

Imagem: Reprodução/Instagram/@thammymiranda

Qual a base científica para sustentar que as alterações corporais realizadas por pessoas trans sejam mutilações e hormônios sejam venenos? Obviamente nenhuma. Para o autor, a transexualidade é uma “loucura pós-moderna” em que as pessoas “se disfarçam do sexo oposto através de truques extremamente assemelhados aos dos travestis d’outrora” e passam a “considerar-se magicamente transformados em indivíduos do sexo oposto”. Ao falar a respeito da pretensa “prestidigitação” dos nossos dias, o autor subentende que pessoas transgêneras sejam pessoas iludidas e que iludem as demais pessoas cisgêneras.

O autor ainda acredita que o futuro reservaria um mundo pretensamente melhor, isto é, sem tamanha loucura coletiva, logo, sem transexuais, já que, segundo ele, vamos ainda estudar o “caso mais agudo de loucura coletiva dos ‘bem-pensantes’ de toda a História”. A ideia de que a transexualidade possa ser um atual “delírio coletivo” ressoa com as considerações a respeito da noção de que se possa “pegar” a transexualidade via contágio social por “modinha midiática” (sim, como se a transexualidade fosse mais uma doença infecciosa). Esta noção estigmatizante e equivocada surgiu em um típico artigo de ciência ruim que foi já extensivamente abordado por uma nota da ANTRA: Réplica a Alexandre Saadeh a respeito de “disforia de gênero de início rápido” e “contágio social”, além de pesquisadores como Zinnia Jones, Julia Serano, Brynn Tannehill, Florence Ashley e Alexandre Baril.

Ramalhete então simula uma preocupação com pessoas que eventualmente se arrependeriam de alterações corporais. No entanto, o autor desconhece os protocolos de cuidado para jovens trans em sistemas de saúde como o SUS e o NHS do Reino Unido, pois se realmente os conhecesse, não difundiria o mito de que os médicos estejam “incentivando” a transição juvenil como uma decisão precipitada e irrefletida e não teria persistido na sua descrição, ao longo de todo o artigo, dos procedimentos médicos por meio de termos com avaliação negativa como “mutilações, destruições, grotescas imitações de uma genitália”. Alega ainda para a existência de “ distúrbios de formação que se farão sentir pelo resto da vida” — “distúrbios” esses que só podem ser presumidos (afinal, o autor nem se dá o trabalho de explicitar que distúrbios seriam esses) por alguém que acredita que corpos transgêneros sejam, desde o princípio, abjetos. Se o autor realmente estivesse preocupado com a saúde física mental de pessoas e particularmente jovens transgêneros, não utilizaria tais termos estigmatizantes.

De acordo com a pesquisa da National Center for Transgender Equality, realizada com 28 mil pessoas transgêneras ou de gênero diverso dos Estados Unidos em 2015, 8% delas relataram alguma forma de destransição ou arrependimento em relação à transição de gênero. No entanto, 62% das pessoas que relataram experiências de destransição ou arrependimento falaram que destransicionaram apenas temporariamente, vivendo atualmente em tempo integral em um gênero diferente daquele que foi designado ao nascimento. Algumas das principais causas de destransição foram: pressão de algum familiar (36%); excesso de discriminação e constrangimento (31%); dificuldade em encontrar emprego (29%) e pressão do seu empregador (17%). Daquelas pessoas que destransicionaram, 5% disseram que destransionaram porque perceberam por si mesmas que a transição não era adequada para elas (totalizando apenas 0,4% do total da amostra). Estes dados sugerem que 95% das pessoas que passaram por alguma experiência de destransição estariam mais predispostas a afirmarem uma identidade trans e/ou retransicionarem em um ambiente social mais favorável.

Voltando ao artigo, Ramalhete não titubeia ao dizer diretamente que a transexualidade é um “distúrbio doentio de autoimagem extremamente similar ao da mocinha esquelética que se acha gorda e por isso vomita o que come ou se recusa a comer”. Com base em quais estudos e evidências científicas o comentarista pode alegar que a transexualidade é um distúrbio comparável à anorexia? Com base em pronunciamento de que médico, instituição ou especialista o senhor Ramalhete acha que pode afirmar isso? Estaria o comentarista a par das inúmeras evidências que mostram que o acesso a cuidados médicos de alteração corporal melhora a saúde física e mental de pessoas transexuais? Saberia a respeito da forma como a CID atualmente compreende a transexualidade não mais como uma doença?

A transexualidade não é um distúrbio corporal ou de imagem porque existem evidências consolidadas de que pessoas transexuais efetivamente se beneficiam de alterações corporais. A comparação com distúrbios de imagem é completamente enganosa, porque ao contrário de alterações corporais medicamente assistidas em pessoas transexuais, pessoas com distúrbios corporais vão continuar se sentindo insatisfeitas com as eventuais alterações corporais realizadas. Uma pessoa com anorexia, por definição, não irá se sentir satisfeita com sua imagem, por mais magra que esteja. Isso simplesmente não se aplica às alterações corporais demandadas por pessoas transexuais. Em nenhum cenário possível frente a todas as evidências científicas consolidadas a respeito do tratamento de pessoas trans e anoréxicas você pode comparar cuidados afirmativos de gênero com endosso à anorexia. Natalie Reed, em seu texto traduzido por mim chamado “13 Mitos e ideias erradas sobre mulheres trans” explica esta diferenciação de maneira exemplar no mito número 9:

9. Por que simplesmente você não se aceita como você é? Por que você não poderia aprender a ficar confortável consigo mesmo?

Este mito geralmente é baseado na analogia com cirurgias estéticas e distúrbios alimentares.

Afinal, ensinamos as pessoas a fazer o melhor possível em rumo a aceitação de seus corpos e não se tratarem com auto aversão. Nós ensinamos corretamente às pessoas que a auto-aceitação é de grande importância para o seu bem-estar mental e emocional. A resposta adequada aos problemas de imagem corporal é terapia e reforço da auto-aceitação, e não facilitar uma obsessão com cirurgias estéticas ou permitir um distúrbio alimentar.

Mas disforia de gênero não é tão simples como um “problema de imagem corporal”, e está provado que não responde à terapia e à medicação psicotrópica. Há certas expectativas razoáveis que uma pessoa pode ter para o seu corpo, e existem certos conflitos entre o mapa corporal ou auto-imagem e a configuração física do corpo que merecem ser abordados por meios médicos.

Considere, por exemplo, o caso de enxertos de pele para uma vítima de queimadura, cirurgia plástica para alguém com uma deformidade que a debilita psicologicamente ou socialmente ou próteses para amputados. Nesses casos, não se ensina apenas a auto-aceitação. Isso faz parte do processo, com certeza (como ocorre com a transição de gênero), mas fornecemos intervenção médica e não questionamos nem menosprezamos o seu desejo por isso. Estas pessoas só estão pedindo por um nível relativamente básico de integridade corporal. Esta linha é subjetiva, mas existe.

Se você é cisgênero, pergunte-se: se seus órgãos genitais sumissem ou se desfigurassem em um acidente, você gostaria que alguém o repreendesse por querer uma prótese ou cirurgia estética? Ter um corpo em sintonia com a sua concepção interna de sexo e gênero é uma coisa perfeitamente razoável de se querer e uma coisa muito difícil de se viver sem.

Além disso, esses tipos de procedimentos e a transição de gênero possuem pontos finais e objetivos definidos e específicos. Distúrbios alimentares e cirurgia estética não. Quando uma pessoa tem algum distúrbio psicológico grave da imagem corporal, presumidamente ela nunca se sentirá bonita ou magra o bastante. Elas continuarão infelizes, e as mudanças físicas não resolverão o problema subjacente. No caso da transição de gênero e procedimentos cosméticos para queimaduras e deformidades, há um ponto final e os procedimentos produzem consistentemente um grande benefício psicológico e emocional com melhorias significativas no bem-estar do paciente.

Ramalhete também fala de forma dúbia a respeito de uma condenação à prostituição mais degradante, “a viver de satisfazer taras indizíveis de degenerados muitas vezes agressivos”, ao mencionar que “rapazes pobres confusos” se tornam “figuras estranhas no mais das vezes caricatas” e por isso “cronicamente desempregadas e alijadas da sociedade”. Esta passagem é especialmente ambígua, pois ela toca na exclusão social que travestis estão expostas, mas aborda a questão de maneira completamente invertida, típica à ideologia transfóbica: culpabilizando a vítima pela exclusão que ela sofre. É bastante surpreendente no final de seu texto o autor dizer que se importa com os mais vulneráveis. Ao subentender que travestis sejam alijadas da sociedade e cronicamente desempregas em função de suas supostas “figuras estranhas e caricatas”, Ramalhete falha em compreender que a origem da discriminação não está no fato de pessoas trans existirem (e de serem supostamente “estranhas” e “caricatas”), e sim no fato de que pessoas cisgêneras acreditarem que pessoas trans não possam ser bons profissionais em razão do preconceito arraigado socialmente e na própria trajetória de expulsão familiar e escolar que marca a vida de muitas travestis e mulheres trans com muita violência e injustiça. É incrível que não ocorra a Ramalhete que a exclusão de pessoas trans se dê justamente em virtude de inúmeros estigmas e preconceitos que o autor acaba reproduzindo ao longo de todo o texto.

Ramalhete estaria a par, por exemplo, da recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que determina que trabalhadores transgêneros estão protegidos pela lei federal que proíbe discriminação com base na identidade de gênero? A decisão explicitamente determina que se configura discriminação quando um empregador demite um trabalhador por ele ser transgênero.

Diante de tudo o que foi exposto, é preciso nos perguntarmos em que medida portais de notícia podem veicular esse tipo de conteúdo sem antes serem responsabilizados diretamente pela difamação individual e coletiva. Frente à lei que pune o discurso de ódio contra pessoas LGBT, não deve ficar muito difícil em concluir que a Gazeta do Povo deveria ser processada e responsabilizada em indenizar ONGs que prestam assistência social para pessoas trans.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.