5 Mitos mais comuns sobre crianças e jovens transgêneros

Confira abaixo os mitos mais recorrentes que mobilizam desinformação a respeito da saúde da população trans, especialmente a mais jovem

Beatriz Pagliarini Bagagli
27 min readSep 6, 2021
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MITO #1

“A afirmação de gênero é como uma imposição de gênero: jovens estão sendo forçados ou levados a tomarem decisões precipitadas que eles não entendem ou não estariam aptos a fazer, por isso vão se arrepender da transição de gênero; abordagens de afirmação de gênero não estão fornecendo todas as opções possíveis para além da transição; a identificação transgênera em jovens depende da prescrição de papéis de gênero estereotipados sobre os seus comportamentos”.

Nas expressões acima há um direcionamento unilateral a respeito do questionamento da capacidade de um jovem ou criança poder reivindicar a legitimidade de sua identidade ou expressão de gênero trans. Isto ocorre pois não se costuma fazer o mesmo com a capacidade dos jovens em reivindicarem suas identidades ou expressões de gênero se elas forem cisgêneras (pois assumimos de antemão a legitimidade ou naturalidade do gênero de pessoas cis).

Este duplo padrão revela, na verdade, vieses cisnormativos. Achados de pesquisas como a de Olson et al. (2015), que mostram que crianças trans possuem tanta certeza a respeito de suas identidades de gênero quanto crianças cis, sustentam que não deveríamos utilizar um duplo padrão na forma como validamos e compreendemos a identidade de gênero das crianças e adolescentes.

É bastante comum em discursos enviesados a concepção distorcida que o diagnóstico de disforia de gênero seja uma imposição externa com base na observação e prescrição de estereótipos de gênero sobre uma criança ou adolescente. Tannehill (2017) observa que, na verdade, o ponto principal de sustentação de uma abordagem afirmativa para os jovens transgêneros é o fornecimento de um espaço seguro para explorar a própria identidade e expressão sem medo de sofrer rejeição.

Não se trata, portanto, de um direcionamento a uma identidade específica. É simplesmente um equívoco pensar que as perspectivas de afirmação de gênero pressionariam uma criança para a transição de gênero. Só se pode caracterizar a abordagem de afirmação de gênero como um tipo de pressão ou imposição de gênero por meio da própria distorção dos princípios éticos que norteiam esta abordagem de cuidado. Olson e Durwood (2016) afirmam que não existe nenhuma evidência de que os pais que aceitam seus filhos trans estejam pressionando-os para que sejam trans, tampouco de que as crianças em não conformidade de gênero estejam sendo pressionadas socialmente para serem trans.

O número tanto de destransição (particularmente a destransição decorrente de arrependimento pela transição de gênero) como de arrependimento por alterações corporais de transição de gênero é extremamente baixo — e tem permanecido baixo a despeito do número cada vez maior de pessoas trans, incluindo as mais jovens, que têm conseguido acessar esses procedimentos nos últimos anos com uma maior facilidade, a partir da ampliação de serviços e recursos pautados em abordagens de afirmação de gênero. A WPATH (2020) declarou explicitamente que “não há estudos que apoiem a alegação de que crianças estejam sendo forçadas a se submeter a tratamentos dos quais podem se arrepender”.

De acordo com a 2015 U.S. Transgender Survey da National Center for Transgender Equality (JAMES et al., 2016), 8% do total de 28 mil pessoas transgêneras ou de gênero diverso dos Estados Unidos entrevistadas relataram alguma forma de destransição ou arrependimento em relação à transição de gênero. No entanto, 62% das pessoas que relataram experiências de destransição ou arrependimento falaram que destransicionaram apenas temporariamente, vivendo atualmente em tempo integral em um gênero diferente daquele que foi designado ao nascimento. Algumas das principais causas de destransição foram: pressão de algum familiar (36%); excesso de discriminação e constrangimento (31%); dificuldade em encontrar emprego (29%) e pressão do seu empregador (17%). Daquelas pessoas que destransicionaram, 5% disseram que destransionaram porque perceberam por si mesmas que a transição não era adequada para elas (totalizando apenas 0,4% do total da amostra).

Estes dados sugerem que 95% das pessoas que passaram por alguma experiência de destransição estariam mais predispostas a afirmarem uma identidade trans e/ou retransicionarem em um ambiente social mais favorável. A pressão social para que as pessoas sejam cisgêneras tende a ser subestimada por perspectivas cisnormativas, hegemônicas em nossa sociedade, e é efetivamente muito mais intensa e prevalente do que qualquer suposta “pressão” de pais e familiares que apoiam a identidade trans de seus filhos para que eles sejam trans. Resultados cirúrgicos desfavoráveis podem ser um fator para algum tipo de arrependimento, sem que isso implique necessariamente destransição ou arrependimento pela identificação transgênera em si. Outros casos envolvem a adesão a discursos de conversão LGBT por vieses de fundamentalismo religioso, especialmente cristão (conferir relatos de ex-ex-gays).

É bastante frequente a associação tecida entre estereótipos de gênero e a expressão de gênero de pessoas trans, sobretudo em discursos feministas radicais trans-excludentes. Alegar, contudo, que as identidades trans dependam exclusivamente de estereótipos de gênero é em si mesmo um ato de estereotipização de pessoas trans, pois ignora a diversidade da expressão de gênero entre as pessoas trans, incluindo crianças e adolescentes.

Assumir que uma pessoa trans se reconhece como trans tão somente em virtude de estereótipos de gênero simplesmente não condiz com a forma como as pessoas trans se reconhecem como trans. Além disto, simplesmente não tendemos fazer o mesmo com identidades cis e masculinas. Se reconhecer como trans é algo que diz respeito à integridade da forma de ser e estar no mundo e se reconhecer enquanto sujeito de uma identidade de gênero. É um processo complexo de se reconhecer como pertencente a um grupo minoritário que não envolve necessariamente estereótipos do gênero com o qual pessoas trans se identificam.

Pessoas trans, inclusive crianças trans e de gênero diverso, gostam também de atividades e aspectos que não são necessariamente o estereótipo do gênero com o qual elas se identificam e isso não as torna cisgêneras nem “menos trans”. Falar sobre estereótipo de gênero aqui é necessariamente abordar aspectos, comportamentos e preferências parciais e dispersas da vida de qualquer pessoa. Achar, portanto, que aspectos, comportamentos e preferências parciais e dispersas de pessoas trans são a causa da identidade de gênero de uma pessoa é em si uma forma de estereotipação de pessoas trans que precisa ser criticada. Trata-se de uma redução violenta da complexidade das trajetórias e identificações trans. Para uma análise de discursos feministas radicais trans-excludentes que acusam pessoas trans de reproduzirem estereótipos de gênero, conferir Bagagli (2021a).

MITO #2

“A transexualidade é a nova cura gay juvenil: mulheres trans e homens trans são na verdade, respectivamente, homens gays e lésbicas iludidos e pressionados pelas normas a se identificarem como heterossexuais por meio da transição de gênero; abordagens de afirmação de gênero funcionam como terapias de conversão de sexualidade para crianças e adolescentes LGB”.

Este segundo mito se relaciona intimamente com o mito #1, abordado acima, pois também consiste na ideia de que cuidados de afirmação de gênero sejam violentos e impositivos, especialmente para crianças e adolescentes LGB. De acordo com Mizock e Lundquist (2016), a ideia ou tendência em considerar a transgeneridade como uma repressão da homossexualidade consiste em um problema recorrente de conduta de muitos psicólogos, que entrava os próprios processos terapêuticos. Atribuir o caráter homofóbico ou heteronormativo ao acesso a cuidados para transição, argumenta Ashley (2019), é infundado, além de ignorar a presença da homossexualidade e bissexualidade entre as pessoas trans.

Este tipo de alegação não se sustenta pois se baseia em uma compreensão superficial da orientação sexual, segundo a qual a mera troca de termos seria equivalente a mudar a orientação sexual de alguém sem que se efetivamente mude o alvo desta atração sexual. Isto é, o fato, por exemplo, de uma moça transgênera que passou a ter o seu gênero feminino reconhecido socialmente e, com isso, deixou de ser vista ou nomeada como um jovem homossexual para ser vista ou nomeada como uma jovem heterossexual não nos permite concluir, de forma alguma, que esta jovem tenha passado por algum tipo de terapia de conversão de sexualidade (popularmente conhecida como “cura gay”).

Hidalgo et al. (2013) entendem que a abordagem afirmativa não pode ser interpretada como uma prática de conversão de sexualidade pois nesta abordagem a identidade transgênera simplesmente não é prescrita como um desfecho preferível às demais formas possíveis de subjetivação de gênero e sexualidade. Admitir legitimidade de uma identificação transgênera de uma criança não implica na adoção de uma perspectiva essencialista ou impositiva a respeito desta identidade ou da rejeição da homossexualidade. É preciso ainda considerar a forte correlação entre o preconceito contra as pessoas homossexuais e o preconceito contra pessoas trans (JONES, 2018). É muito mais provável que pais que aceitam a identidade trans de seus filhos não sejam homofóbicos; enquanto, por outro lado, pais homofóbicos tendem a ser em grande medida também transfóbicos e vice-versa.

A alegação de que abordagens de afirmação de gênero sejam formas de conversão de sexualidade se sustentam frequentemente pela projeção hipotética e equívoca de percepções de algumas pessoas cisgêneras a respeito de suas próprias identidades e vivências, como os relatos presentes em uma carta da escritora J.K. Rowling. Essas pessoas alegam que, enquanto gays e lésbicas, teriam passado pela transição de gênero se fossem crianças hoje em dia — dando a entender que iriam também se arrepender, pois essa identificação transgênera não seria autêntica ou legítima.

Há implícita, portanto, a ideia de que seria necessária, de alguma forma, uma certa quantia de rejeição social contra crianças trans para que as demais não sejam supostamente “confundidas” e “levadas” a serem trans de maneira inautêntica. Jones (2016) observa que se tratam sobretudo de alegações de arrependimentos hipotéticos precisamente em razão da ausência de relatos de arrependimentos concretos, tendo em visto o número extremamente baixo de arrependimento em relação a procedimentos de afirmação de gênero. A autora observa que as alegações de pessoas cisgêneras sobre a hipótese de realizarem a transição de gênero na infância caso isso tivesse sido permitido a elas e a hipótese subsequente de que se arrependeriam são deturpações sensacionalistas sem base em fatos, pois as abordagens afirmativas oferecem amplamente a oportunidade para que os jovens possam não prosseguir com a transição caso assim desejarem.

Ao analisar o relato de Rowling, Wynn (ContraPoints, 2021) observa precisamente que a escritora projeta erroneamente as suas próprias memórias de adolescência problemática nos homens transgêneros:

Enxergar a aceitação familiar e social da identidade de gênero de crianças e jovens como uma ameaça em si à própria sexualidade e de todas as demais pessoas é desproporcional e sem fundamento em quaisquer evidências científicas e empíricas. Essa projeção funciona, na realidade, como uma arma retórica para fomentar medos injustificados a respeito das pessoas trans e, especialmente, dos jovens trans, além de desarticular a luta transgênera do movimento de gays, lésbicas e bissexuais.

A generalização equívoca segundo a qual toda identificação transgênera é uma forma de repressão da própria homossexualidade cisgênera está na base de posicionamentos cisnormativos que são totalmente incapazes de abordar criticamente as práticas danosas e violentas de tentativas de conversão da identidade de gênero, precisamente porque deslegitimam a identidade transgênera (conferir o mito #3 abaixo).

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MITO #3

“A transexualidade é uma psicopatologia pois está associada ao sofrimento psíquico, logo, se atenuarmos ou tratarmos este sofrimento, podemos prevenir a transexualidade, abordando a raiz do problema; é desejável prevenir a transexualidade enquanto um desfecho clínico e restabelecer, portanto, a conformidade de gênero e/ou o senso de alinhamento com o sexo biológico (‘cura trans’); a transexualidade não é um desfecho desejável do ponto de vista da saúde mental”.

Não existe nenhuma evidência de que a transexualidade possa ser “prevenida” (ou mesmo “curada”) como um desfecho clínico de forma direta (conversão de identidade de gênero) ou mesmo indireta por meio do tratamento de transtornos psiquiátricos que alguma pessoa eventualmente tenha, tampouco que seja possível dissuadir alguém de se identificar como trans por meio de algum tipo de tratamento e isso gerar algum benefício para a saúde mental e física desta pessoa. Nenhum tipo de tratamento ou intervenção psicológica destinada a curar ou tratar a disforia de gênero com o objetivo de estabelecer a conformidade entre a identidade de gênero e o gênero assignado foi avaliado empiricamente de forma sistemática e se mostrou eficaz (GIJS; BREWAEYS, 2007, p. 215).

Existem evidências bem consolidadas a respeito dos índices alarmantes de violência contra a população trans em diveros países, assim como evidências que mostram que as taxas mais altas de psicopatologia entre a população trans em comparação com a população cis são explicadas pelo estresse de minoria, que decorre precisamente do fato das pessoas trans viverem em sociedades transfóbicas (conferir verdade #2). O sofrimento que decorre especificamente da disforia de gênero, por outro lado, é comprovadamente atenuado ou suprimido pelas alterações corporais, caso desejadas (conferir verdade #3).

A American Psychological Association (2015, p. 17–18) entende que a suposição de que alguma pessoa tenha alguma psicopatologia somente em função dela ser transgênera é consequência do estigma e preconceito, o que interfere negativamente na prestação de cuidados para esta população. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) despatologizou as identidades transgêneras, pois entende que a patologização pode funcionar como uma maneira de estigmatizar as pessoas trans, o que interfere negativamente na própria saúde das pessoas trans (conferir: BAGAGLI, 2020). A incongruência de gênero não é categorizada como um transtorno mental pelo CID-11, mas sim como uma condição relacionada à saúde sexual. Este gesto também reflete a crescente percepção de que o acesso aos cuidados para a transição de gênero é melhor codificado em linguagem não psiquiátrica. A Resolução nº 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia do Brasil rechaça a compreensão de que as identidades trans sejam patológicas.

Perspectivas patologizantes podem sustentar uma crença não comprovada e sem evidência de que seja possível dissuadir as demandas por reconhecimento de uma identidade trans por meio do tratamento de sintomas de sofrimento psíquico como depressão e ansiedade. A hipótese subjacente a essa ideia é a identificação transgênera decorrer de algum transtorno mental, de forma com que se possa “curar” ou “tratar”, mesmo indiretamente, a transexualidade, fazendo com pessoas trans passem “espontaneamente” a se identificar como cis.

É muito mais provável, ao contrário, que uma pessoa trans com acesso a bons cuidados de saúde mental tenha, de fato, maiores recursos para reivindicar a sua própria identidade de gênero e transicionar do que aquelas pessoas trans desassistidas e em vulnerabilidade social. A falta de acesso aos cuidados médicos de transição é em si mesma uma causa de sofrimento psíquico bastante recorrente para aquelas pessoas trans que precisam, tendo em vista a notável falta de apoio institucional, de treinamento (incluindo os currículos de formação dos profissionais de saúde) e de recursos (incluindo financeiros) ao cuidado com a saúde da população trans que ainda persiste ao redor do mundo todo. A ideia em si de que as pessoas, incluindo os jovens e crianças, não deveriam ser transgêneros fundamenta práticas políticas de exclusão social que agravam ou mesmo causam o sofrimento psíquico nas pessoas trans, independentemente da idade.

A crença de que seja possível e desejável transformar a identidade trans em cis por meio de terapias constitui uma abordagem de conversão de identidade de gênero. Designações como esforços para mudar a identidade de gênero, terapias de reconversão; reparação; reversão; reorientação; reparativas; (re)conversivas e corretivas, também são usadas como sinônimos.

Segundo o Memorandum of Understanding on Conversion Therapy in the UK (2017) assinado por diversas entidades do Reino Unido, “terapia de conversão” é um termo abrangente que inclui qualquer tipo de abordagem terapêutica, modelo ou ponto de vista individual que suponha que uma determinada orientação sexual ou identidade de gênero seja inerentemente preferível a uma outra, e que tenha como objetivo provocar uma mudança na orientação sexual e/ou identidade de gênero de alguém ou suprimir uma forma de expressão da orientação sexual e/ou identidade de gênero. Tanto as terapias de conversão de sexualidade quanto de identidade de gênero compartilham da mesma estratégia de fazer os indivíduos se comportarem de uma maneira mais socialmente normativa.

As tentativas de conversão de identidade de gênero são comprovadamente prejudiciais: conferir os relatórios da American Psychiatric Association (APA, 2018); American Psychological Association (APA, 2021); Canadian Psychiatric Association (2014); Canadian Psychological Association (2020); International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA WORLD, 2020); Nações Unidas (2020) e Substance Abuse and Mental Health Services Administration (SAMHSA, 2015); dentre outras associações ou instituições. O SOC-7 não considera éticas quaisquer tentativas de conversão de identidade de gênero. A Resolução nº1 de 29 de janeiro de 2018 do Conselho Federal de Psicologia do Brasil veda aos psicólogos a prática de terapia de conversão.

Pesquisas (GREEN et al., 2020; TURBAN et al., 2020) mostram que a exposição a terapias de conversão de identidade de gênero está associada a maiores índices de tentativa de suicídio entre as pessoas trans. Terapias de conversão de sexualidade e de identidade de gênero são igualmente prejudiciais, particularmente para as pessoas mais jovens (e por isso, ainda mais vulneráveis).

“Especialistas” defensores de abordagens desatualizadas e prejudiciais, como Kenneth Zucker, constataram que práticas psicológicas não seriam capazes de “transformar” adolescentes e mulheres trans adultas em homens masculinos, por exemplo, então a “preocupação terapêutica” voltou-se rapidamente para crianças, pois imaginou-se que alguma “intervenção precoce” nestas crianças poderia “preveni-las” de se tornarem transexuais e/ou homossexuais — conferir a série de artigos de Cristan Williams (2017) denominada “Disco Sexology”, no TransAdvocate.

Por isso, nesta perspectiva, a conversão é vista como uma prática terapêutica válida e viável tendo em vista evitar a discriminação futura que essas crianças estariam expostas caso persistam com uma identificação LGBT. A premissa subjacente destas abordagens é de que uma identificação transgênera é um “desfecho” menos desejado que uma identificação cisgênera, o que configura um julgamento de valor (SERANO, 2016). Tal abordagem corretiva é baseada em nada mais do que a esperança paternalista de que essas crianças precisam ser salvas dos problemas e frustrações que resultariam da manifestação de comportamentos de não conformidade de gênero em uma sociedade preconceituosa (PICKSTONE-TAYLOR, 2003). Estas perspectivas ignoram, obviamente, o próprio dano que estas terapias acarretam para a saúde mental destes jovens, além de reificar e naturalizar a opressão contra pessoas trans, ao simplesmente assumir que seria melhor se os jovens se adequassem à cis-hetero-normatividade.

Forçar uma criança a fingir uma expressão de gênero com a qual ela não se identifica por si só é causa de sofrimento psíquico. Impor um binário rígido de gênero como norte de um modelo terapêutico acaba por coadunar com a exclusão social daqueles que desafiam construções hegemônicas e normativas de gênero, acirrando ainda mais a própria discriminação que se pretendia a princípio evitar (TOSH, 2011a, p. 10). As tentativas clínicas para “prevenir o transexualismo”, não importam o quão bem-intencionadas, são antiéticas porque elas depreciam a dignidade das crianças de gênero diverso, o que pode contribuir para a deteriorização da saúde mental delas (PICKSTONE-TAYLOR, 2003). Em razão desta vulnerabilidade específica, Cabral et al. (2016) defendem que haja a remoção completa do diagnóstico de incongruência de gênero na infância.

Uma das melhores formas para reduzir os sentimentos de ostracismo, rejeição e ansiedade são as terapias familiares nas quais os responsáveis são encorajados a aceitar a diversidade de gênero, ao invés de buscar mudar o comportamento de seus filhos (TOSH, 2011b, p. 52). Muitos profissionais tradicionais mudaram de um modelo patologizante e corretivo que localiza o problema (ou suposto problema) na criança para um modelo de apoio/ afirmação que busca ajudar a criança a se auto realizar na própria identidade e expressão de gênero (MINTER, 2012).

Apesar das terapias de conversão estarem atualmente desacreditadas pelas evidências científicas e em desacordo com as melhores práticas de cuidado com a saúde, os seus defensores não definem explicitamente suas abordagens como terapias de conversão, fazendo com que muitas vezes seja difícil identificar, denunciar e combater esse tipo de “terapia”. Como mostra Serano (2016), atualmente, a terapia de conversão de identidade de gênero está sendo propagada como se estivesse protegendo as crianças de gênero diverso de acessarem formas de alteração corporal pois alegadamente iriam se arrepender futuramente, já que seriam “na verdade” homossexuais cisgêneros (conferir o mito #2).

As intervenções psicológicas baseadas em evidências que realmente contribuem para a saúde dos jovens trans incluem: terapias cujas estratégias visam reduzir o impacto dos estressores psicossociais que o adolescente ou criança enfrenta; ampliação do apoio social por meio do envolvimento ambiental (família, escola, etc.) visando o combate à discriminação e assédio, encaminhamento a profissionais de saúde competentes, se indicado, e o fortalecimento da resiliência dos jovens. Terapias de conversão de identidade de gênero não estão incluídas, pois sob uma perspectiva afirmativa e despatologizante não faz nenhum sentido buscar “prevenir” a identificação trans, como se ela fosse uma doença ou um desfecho clínico indesejado.

Carta aberta de profissionais em apoio ao fechamento do CAMH Child Youth and Family Gender Identity Service, em 2015, sob então liderança de Kenneth Zucker.

MITO #4

“Existe um número alto de desistência da identificação trans na passagem da infância para adolescência e vida adulta, logo não se justifica a necessidade da transição de gênero por crianças ou jovens menores de idade; abordagens afirmativas resultam em uma prolongação da identificação transgênera em crianças que, caso contrário, naturalmente desistiriam de se identificar como trans”.

Praticamente todos os estudos que buscaram investigar a porcentagem de crianças trans ou de gênero diverso que continuaram a se identificar como trans ou de gênero diverso na adolescência e idade adulta apresentaram falhas metodológicas (TURBAN; EHRENSAFT, 2018, p. 1232). Números altos de “desistência”, como 80%, surgiram de pesquisas como as de Drummond et al. (2008); Steensma et al. (2011; 2013) e Wallien e Cohen-Kettenis (2008).

Estas pesquisas tiveram problemas no processo diagnóstico de disforia de gênero (incluindo ou contando equivocadamente jovens cisgêneros com expressão de gênero diverso como se fossem jovens trans com disforia de gênero). Crianças que nem ao menos se identificavam com o gênero oposto ao designado no nascimento foram contadas, enquanto crianças, como se fossem trans, e posteriormente categorizadas erroneamente como “desistentes” (quando de fato jamais foram trans e nem poderiam ter “desistido”, para início de conversa, pois nem ao menos se identificavam como trans, tampouco reivindicavam consistentemente uma identidade ou expressão de gênero oposta ao gênero assignado).

É notável também a tendência dos pesquisadores em enquadrarem a identidade cisgênera, mesmo tacitamente, como o oposto saudável da identidade transgênera (esta vista como problemática ou patológica), assumindo, de forma enviesada, portanto, qualquer indício de uma identidade cisgênera como válida e sinal da “verdadeira identidade” da criança, enquanto que qualquer demonstração de uma identidade transgênera é posta sob um nível maior de questionamento. Estudos conduzidos na cidade de Toronto, sob a então a liderança de Kenneth Zucker, apresentam problemas éticos ao assumirem que o objetivo do tratamento era a diminuição da chance da criança se tornar um adulto ou adolescente transgênero.

As diferenças e semelhanças entre crianças transgêneras e de gênero diverso são corretamente destacadas em Murchison et al. (2016, p. 6), neste sentido (nem toda criança de gênero diverso e/ou em não conformidade de gênero é uma criança transgênera). Outros problemas de metodologia incluem a categorização dos usuários de saúde que não completaram as pesquisas ou que deixaram de frequentar as clínicas como “desistentes”.

Diversos estudos já mostraram que é altamente improvável que uma criança trans passe a se identificar com o gênero assignado ao nascimento se a sua experiência de disforia de gênero continuar durante a adolescência (DE VRIES et al., 2014). Pesquisas também já mostraram que crianças que atendem às diretrizes clínicas atuais para disforia de gênero são tão consistentes em sua identidade de gênero quanto os seus pares cisgêneros (OLSON et al., 2016).

Para Winters (2017), a menção ao número de cerca de 80% de desistência tem servido de argumento para desencorajar o reconhecimento das identidades de gênero de crianças trans e de gênero diverso e negar os direitos civis básicos, particularmente o acesso à educação a crianças de gênero diverso. Segundo a autora, o axioma de 80% de “desistência” baseou-se em estudos clínicos falhos no Toronto Clarke Institute of Psychiatry (agora chamado de Centre for Addiction and Mental Health, ou CAMH) e no VUUniversity Medical Center em Amsterdã, que já foram amplamente criticados por deturpar resultados de acompanhamento de pacientes, apresentarem vieses de amostras que confundiam disforia de gênero com não conformidade de gênero, por selecionar coorte baseado em critérios ultrapassados do DSM-IV de diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero na Infância e por negligenciar possíveis fatores de confusão, particularmente referente às psicoterapias prejudiciais de conversão de identidade de gênero praticadas na clínica Clarke/CAMH, além de prescindirem de grupo de controle (TANNEHILL, 2017).

Quando o aspecto da “desistência” (o que pode incluir a destransição e/ou arrependimento) é excessivamente priorizado com base na estigmatização das identidades trans, o acesso a cuidados para a transição (médica ou social) tão importantes e necessários para pessoas trans, especialmente às menores de idade, tende a ser invisibilizado, obstaculizado, menosprezado e até mesmo atacado. Turban (2017) entende que a sensação de se sentir julgado e estigmatizado decorrente da falta de permissão para a transição pode deteriorar a relação entre pais e filhos trans. Mesmo que a suposta taxa de “desistência” fosse alta, isso não justificaria de forma alguma a proibição da transição de gênero por crianças e adolescentes, ou a pressão para que elas se enquadrem nas expectativas e papéis do gênero assignado ao nascimento — já que ainda existiria um número, mesmo minoritário, de jovens que “persiste” em se identificar como trans.

Há muitas vezes a percepção, mesmo tácita, de que a chance de uma criança “persistir” em sua identificação transgênera poderia aumentar (ou de diminuir a chance de ela “desistir” em sua identificação trans) caso ela tenha a permissão para realizar a transição social durante a infância. No entanto, não há de fato nenhuma evidência de que as abordagens afirmativas possam de fato produzir uma maior prevalência e persistência da identidade trans em crianças, ou produzam uma menor taxa de “desistência” — precisamente porque neste modelo de cuidado não há a imposição de uma identidade ou sexualidade em específico como um desfecho preferível pré-determinado (conferir o mito #1). Esta percepção, por sua vez, confirma o próprio viés de considerar que tornar-se ou identificar-se como trans é, de alguma forma, um resultado menos favorável ou menos desejável do que tornar-se ou se identificar-se como cis.

Além disto, não há nenhum dado que indique que as crianças que transitam de gênero mais de uma vez ao longo do tempo, incluindo a volta para o gênero originalmente assignado ao nascimento, correm o risco de sofrer quaisquer distúrbios psicológicos, desde que sejam apoiados em sua trajetória (EHRENSAFT, 2016). O próprio binômio “desistentes” e “persistentes”, por sua vez, não é adequado para descrever as experiências identitárias de pessoas trans em sua diversidade e potencial fluidez. (Conferir: BAGAGLI, 2021b; TEMPLE-NEWHOOK et al., 2018).

Muitos trabalhos que visam prever as “chances” de uma criança de gênero diverso se tornar lésbica, bissexual, gay ou transgênera na vida adulta acabam aumentando o estigma contra a população LGBT ao invés de atenuá-lo (HEGARTY, 2009), além de não estarem condizentes com a ética de pesquisa neste campo, que simplesmente não mais endossa tentativas de “prever” ou “adivinhar” a identidade de gênero final ou verdadeira de uma criança (WINTERS et al., 2018, p. 247), mas sim fornecer as melhores e efetivas formas de apoiar a saúde e bem estar das crianças, priorizando as suas identidades, percepções e necessidades declaradas no momento presente (TEMPLE-NEWHOOK et al., 2018; SERANO, 2018).

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MITO #5

“O aumento atual de jovens se identificando como trans é uma nova epidemia decorrente de um fenômeno de contágio social entre pares, influência midiática ou das atuais redes sociais; essa situação revelaria a existência de um ‘novo tipo’ de disforia de gênero, que seria de surgimento rápido”.

É preciso contextualizar a noção de “disforia de gênero de surgimento rápido decorrente de contágio social” (LITTMAN, 2017; LITTMAN, 2018) no interior de esforços que visam argumentar a respeito da existência de um suposto subgrupo de jovens sob o qual a base de evidências científicas atuais a respeito de disforia de gênero não se aplicaria e sugerir que a identificação transgênera destes jovens não seria autêntica (já que decorreria de uma nova espécie de “contágio social” contemporâneo). Uma série de problemas éticos e metodológicos comprometem estes estudos (conferir: ANTRA, 2019; SERANO, 2019; JONES, 2019; RESTAR, 2020). A autora dos estudos, Lisa Littman, também não tem nenhuma conexão ou experiência com o tratamento de jovens transgêneros.

A ideia de que a disforia de gênero teria surgido repentinamente em um subgrupo de jovens é usada como argumento de que a disforia poderia decorrer de uma espécie de “influência de pares” ou mesmo da mera divulgação da existência de pessoas trans na mídia e redes sociais, assim como indício para a própria existência de um subgrupo de jovens cisgêneros que acreditariam falsamente serem trans e se arrependeriam da transição caso realizem algum tipo de procedimento de alteração corporal. No entanto, não existe de fato nenhuma evidência de que a disforia de gênero possa surgir de forma repentina por meio de contágio social.

Como bem demonstra Jones (2021), os estudos que deram origem à noção de “disforia de gênero de surgimento rápido decorrente de contágio social” baseiam-se unicamente no relato de pais que reprovam a identidade de gênero de seus filhos transgêneros. Os filhos transgêneros sequer foram avaliados ou entrevistados neles. O relato e a percepção de pais reprovadores sobre a identidade de gênero de seus filhos trans (ou em não conformidade de gênero) não constituem uma base de dados confiável para termos acesso a qualquer tipo de evidência sobre a real “velocidade” do surgimento da disforia de gênero, tendo em vista a significativa discrepância temporal entre o momento em que uma criança ou jovem tem consciência de que é trans e o momento em que decide posteriormente externalizar essa identificação para os seus pais. É preciso levar em consideração, sobretudo, uma ainda maior tendência neste grupo em especial de jovens em não relatar ou expressar comportamentos de não-conformidade de gênero, tendo em vista que se tratam precisamente de pais que rejeitaram a identificação trans de seus filhos, assim como a própria tendência de pais reprovadores de ignorarem eventuais sinais de disforia de gênero que seus filhos poderiam ter apresentado ao longo de suas vidas. Muitas pessoas trans podem simplesmente não se assumir enquanto trans por medo de sofrer rejeição, exclusão e estigmatização, e isso tende a ser agravado em ambientes familiares hostis.

Caso a hipótese de um novo “tipo” disforia de gênero de surgimento rápido por contágio social fosse verdadeira, esperaríamos um número significativo de arrependimento da transição de gênero neste suposto grupo de jovens (já que segundo a teoria de Littman, a literatura consolidada a respeito das melhores práticas no cuidado com a população trans não se aplicaria para esta suposta nova condição). No entanto, isso não se observa, já que a taxa de arrependimento tem permanecido, de forma inalterada, extremamente baixa ao longo dos anos.

Dhejne et al. (2014) descobriram que houve, de fato, uma queda significativa na taxa de arrependimento nos últimos anos a partir de uma pesquisa na Suécia: enquanto a média de arrependimento do período de 1960 até 2010 foi de 2,2%, entre 2001 e 2010 especificamente foi de apenas 0,3%. Dados dos Países Baixos (WIEPJES et al., 2018) também mostram um aumento substancial das pessoas trans buscando atendimento médico — de 34 pessoas em 1980 para 686 em 2015 — e as taxas de arrependimento permaneceram extremamente baixas (apenas 0,6% das mulheres trans e 0,3% dos homens trans que foram submetidos à gonadectomia). Isso é sinal de que os achados de Littman a respeito de uma suposta nova condição são, na verdade, já explicados pela literatura médica consolidada a respeito da disforia de gênero em crianças e adolescentes, e que o atual aumento do número de pessoas trans não indica uma suposta nova condição que decorreria de contágio social.

As hipóteses traçadas por Littman, portanto, não são consistentes com a Navalha de Occam (ou Ockham). Como formula Maciel, o princípio da Navalha de Occam prevê que, entre duas teorias com resultados iguais ou que explicam ou preveem os mesmos fenômenos, devemos escolher preferencialmente a teoria mais simples. Existem explicações mais simples e consistentes para o aumento atual de crianças e jovens que se identificam como trans (diminuição do estigma e aumento da aceitação social de pessoas trans) que não dependam de noções tão estigmatizantes, psicopatologizantes e controversas como “contágio social midiático e por pares” e “epidemia trans”.

Não precisamos explicar um suposto aumento inesperado no número de jovens atualmente, mas sim a diminuição ou invisibilidade deste grupo em momentos anteriores em função da presença de um maior estigma transfóbico que levou os jovens transgêneros a esconderem as suas identidades de gênero das demais pessoas. É muito mais “econômico”, neste sentido (obedecendo a Navalha de Occam), supor que jovens que realmente sejam trans estejam agora simplesmente conseguindo cada vez mais expressar suas identidades sem tantas amarras ao invés de supor, quase de forma conspiratória, que jovens cisgêneros estariam sendo levados a acreditarem equivocadamente que são transgêneros pela via controversa de um “contágio” nefasto.

A hipótese de que a transgeneridade em crianças e adolescentes possa decorrer de “contágio social entre pares” também abre brecha para práticas e políticas segregacionistas, pois alguns pais, buscando que seus filhos não sejam “contaminados”, podem então defender que as crianças trans deixem de ter contato com seus filhos nas escolas e demais ambientes de socialização, contribuindo para o agravamento da hostilidade e estigmatização contra crianças trans e de gênero diverso. Segundo Shaw (2019), a sugestão de que os jovens podem ser contaminados por identidades não heterocisnormativas por meio de contágio social pode ser usada para contrariar a legitimidade do acesso a educação, suporte e tratamento adequado.

Para a WPATH (2018), a expressão “Rapid Onset Gender Dysphoria” (Disforia de Gênero de Início Rápido) não é uma entidade médica reconhecida por nenhuma associação profissional importante, constituindo nada além de um termo criado para tentar descrever a proposição de um suposto fenômeno clínico. A Coalition for the Advancement and Application of Psychological Science (CAAPS) e diversas outras organizações e associações apoiam a eliminação do uso da noção de “disforia de gênero de início rápido” devido à falta de suporte empírico rigoroso para sua existência, enfatizando também a importância de se combater a desinformação a respeito dos jovens trans que acompanha o uso desta expressão.

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Leia também: 3 Verdades mais importantes sobre a saúde da população trans.

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Beatriz Pagliarini Bagagli

Transfeminista e analista de discurso, pesquisa o campo de cuidado com a saúde e direitos coletivos para a população trans.